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Cabra Marcado para Morrer

A democracia sem liberdade

Por Vitor Velloso

Festival É Tudo Verdade 2025

Cabra Marcado para Morrer

Qualquer texto sobre “Cabra Marcado para Morrer”, de Eduardo Coutinho, será insuficiente para compreender ou explicitar o que esse documentário significa para a história da cinematografia brasileira. A honesta tarefa de tentar escrever uma crítica sobre o filme em 2025 soa tão arrogante, pretensiosa e (quase) hipócrita que a mera menção da possibilidade cria um entrave inicial. “Cabra Marcado para Morrer” é possivelmente um dos documentários mais estudados do país, e o presente texto não vai somar aos numerosos estudos presentes Brasil afora, mas é um registro admirado de como é possível uma obra atravessar tantos anos e seguir sendo um dos projetos mais cirúrgicos acerca da realidade nacional em sua totalidade. 

Com imagens do subdesenvolvimento brasileiro, o documentário inicia com a clássica “Canção do Subdesenvolvido”, do CPC-UNE (Centro Popular de Cultura da União Nacional de Estudantes), e com a exposição em torno do contraste presente na imagem entre o imperialismo norte-americano e a miséria nacional. Aliás, este é parte do contexto envolvido na realização da música, em torno da aliança Brasil x EUA. Essa imagem do subdesenvolvimento com o parasitismo estadunidense em solo brasileiro, vampirizando a sociedade, nossas riquezas e contaminando a opinião pública acerca da realidade brasileira, está longe de ser nova, tampouco antiga. Para mencionar apenas um breve exemplo de como essa imagem está presente na cinematografia nacional, muitos leitores devem lembrar do transe vivido por Antônio das Mortes ao chegar na estrada com postos “Esso”, caminhões e todos os símbolos da promessa do progresso, que tanto marcaram a comunicação brasileira.

Porém, “Cabra Marcado para Morrer” é tanto sobre Brasil, quanto sobre cinema. Não apenas por tratar em torno de um filme não finalizado, mas por ser o registro final de seus próprios arquivos, e vice-versa. E esse fator transforma o filme em algo particularmente fascinante, pois seu material de arquivo, em parte ficcional, revela sobre todo o processo que levou Coutinho a estruturar o filme em si, em 84, após as interrupções criminosas da ditadura empresarial-militar. Não por acaso, há uma centralização do longa na figura de Elizabeth Teixeira, que completou 100 anos este ano, e que perdeu o marido, João Pedro Teixeira, líder da Liga Camponesa de Sapé, na Paraíba, assassinado aos 44 anos. Mesmo após assistir o filme diversas vezes, a descrição de Elizabeth sobre a cena de seu marido morto é aterrorizante e a montagem, assinada por Eduardo Escorel, provoca o espectador a encarar o cadáver para que possamos compreender o horror provocado pelos latifundiários, policiais e políticos locais. Aliás, vale mencionar que entre todos os personagens reais da história, apenas Elizabeth pôde permanecer no projeto, interpretando a si mesma. 

Entre o projeto original e o documentário rodado posteriormente, há um Brasil tão distinto quanto idêntico. Parte da realidade ali exposta se apresenta de forma substancialmente modificada, mas com problemas idênticos, autoritarismos semelhantes e a miséria predominante. E é justamente por isso que “Cabra Marcado para Morrer” nunca será apenas um filme, pois as leituras acerca do país e do cinema, através do documentário realizado, são tão profícuas que transformam o projeto em algo verdadeiramente imortal. À medida que seu passado se torna a representação de sua própria memória e história, transforma seu passado e seu futuro. Assim, o filme nos convida a refletir sobre a realidade nacional à medida que nos apresenta um processo de frustrações, crimes e realidades modificadas, sem nunca perder a esperança. Não por acaso, se a nota inicial da obra é procurar nos contextualizar sobre todo o processo fracasso de realizar uma ficção, interrompida violentamente pela ditadura, seu caminho final é reconciliar passado-presente-futuro, nos entregando uma representação concreta de como todas essas vidas foram afetadas pela realidade material. É a força do documentário, que mesmo dentro de seus recortes, procura abarcar a vida dessas pessoas, não apenas uma zona de interesse particular. 

Assim, o discurso no fim do filme, feito por Elizabeth Teixeira, é um dos maiores socos no estômago que qualquer brasileiro pode presenciar em uma película até os dias de hoje: “A mesma necessidade de 64 está traçada. Ela não fugiu um milímetro […] Democracia sem liberdade? Democracia com salário de miséria e de fome? Democracia com o filho do operário sem direito de estudar?”.

É aterrorizante que esse discurso seja atual.  

5 Nota do Crítico 5 1

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