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Burial

Arqueologia 2.0

Por João Lanari Bo

Visions du Réel 2022

Burial

Burial”, realizado em 2022, é um documentário experimental, na falta de melhor adjetivo, dirigido pela estreante em longas, a lituana Emilija Skarnulyte. A tradução de burial em português é, como se sabe, enterro ou sepultamento: este é mais um caso, porém, que a sonoridade do título em inglês se impõe, talvez até mesmo em relação ao original, Kapinynas. Rodado em inglês, o filme se organiza em torno de uma ficção científica: um visitante do futuro examina o impacto da geração de energia nuclear – e, em particular, do desmantelamento da Usina Nuclear de Ignalina, localizada na cidade lituana de Visaginas. A jornada vai de um cemitério etrusco até o Novo México, onde ocorreu o primeiro teste nuclear do mundo. As sequências apresentadas são frias, impessoais, um exercício visual tecnológico, por assim dizer. O ângulo pessoal sobressai na parte final, onde prevalece a imaginação – e a imersão, com cenas fabulosas do parque arqueológico submerso de Baiae, no golfo de Nápoles, Itália. Uma cisterna da época romana pode simular um cemitério: urnas emparelhadas nas paredes remetem a uma loja funerária.

O senso comum identifica na arqueologia uma trivial escavação do passado, mera exposição de objetos soterrados em algum lugar da crosta terrestre. “Burial”, ao contrário, se ocupa com os objetos que estão no limiar do soterramento, uma espécie de arqueologia aqui e agora, escavação que começa e acaba na esfera do contemporâneo. Vivemos, enfim, em estado de arqueologia permanente: quando a usina de Ignalina entrou em operação, quase ao mesmo tempo e debaixo do mesmo projeto tecnológico da sua irmã mais famosa, Chernobyl, a ideia, para os próceres da então poderosa União Soviética, era mostrar ao mundo as maravilhas da engenharia socialista numa tecnologia de ponta, a nuclear. Quem assistiu à série da HBO sobre a tragédia de Chernobyl poderá perceber similaridades com o documentário da cineasta lituana: a série utilizou cenários e ambientes de Ignalina que, felizmente, escapou da catástrofe. Por ironia do destino, depois do lançamento na HBO, o turismo na cidade de Visaginas aumentou consideravelmente: passadas mais de três décadas, os níveis de radiação de Chernobyl permanecem altos demais para os turistas passearem pela usina, logo a opção é o simulacro.

A visualidade exuberante de “Burial” é turbinada pela trilha sonora a um tempo minimalista e elaborada com design articulado em camadas distintas. Zumbidos parecem sair das máquinas para adentrar ambientes orgânicos, e vice-versa. Uma cobra píton desliza e se enrola sobre a sala de controle abandonada, reiterando uma performance metafórica do núcleo radioativo que deslizará no tempo por um milhão de anos. Antigas transmissões de rádio com estática hertziana sugerem um retorno à Guerra Fria, quando a percepção da destruição nuclear aterrorizava a humanidade. Ignalina fica na Lituânia, Chernobyl na Ucrânia – e a guerra da Ucrânia, outro exercício arqueológico do presente, fez renascer os temores do apocalipse, no que muitos chamam, de forma trôpega, de Guerra Fria 2.0.

A Lituânia, tal como os demais países bálticos, Estônia e Letônia, atravessou o século 20 sob o medo visceral do expansionismo do vizinho, o gigante russo. Em 2004 todos entraram na OTAN, que garante proteção caso Putin decida invadi-los, como aconteceu em fevereiro de 2022, há pouco mais de um ano, com a Ucrânia. Não é fácil habitar no entorno da Rússia, ao contrário do que pensam analistas apressados. A Lituânia também entrou na União Europeia, no início dos anos 2000: uma das condições impostas foi o desmantelamento da usina de Ignalina, à luz do risco que representava sua operação. Os lituanos concordaram – a primeira fase foi de 2004 a 2013, a segunda de 2014 a 2019. Em 31 de dezembro de 2009, o último reator nuclear foi desligado, pouco antes da meia-noite. Até 2030 o local dos dois reatores da usina deverá estar pronto para reutilização.

Desativar um reator nuclear é tarefa extremamente complexa. Cálculos sofisticados são necessários para depósito dos rejeitos radioativos nas profundezas geológicas do planeta. Na França, um site a 500 metros de profundidade está sendo construído para repositório de resíduos radioativos de nível médio e alto nível de vida longa. Esses depósitos podem durar até 100 mil anos: infelizmente, pode levar um milhão de anos para o material radioativo se decompor completamente.

O filme de Emilija Skarnulyte traz à tona um vislumbre do processo, objetiva e poeticamente – talvez a melhor maneira de lidar com um tema de tamanha importância.

4 Nota do Crítico 5 1

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