Bobi Wine: O Presidente do Povo
O Presidente do Gueto
Por João Lanari Bo
Festival de Veneza 2022
Quais são os caminhos que levam alguém a se credenciar legalmente como candidato presidencial? Pela lógica tradicional, estamos habituados a considerar alguém como potencialmente capaz de liderar uma nação a partir da experiência concreta em atividades políticas, através de partidos, sindicatos e demais associações representativas. Depois que a sociedade do espetáculo se tornou dominante na crosta terrestre – quer dizer, quando mercadoria e aparência se tornaram fundamentalmente mais valorizadas no contexto das relações sociais – as vias de acesso ao cargo máximo dos países passaram a incluir egressos do mundo do espetáculo, para o bem e para o mal. Um dos casos mais interessantes desse fenômeno pode ser visto em “Bobi Wine: O Presidente do Povo”, dirigido pela dupla Moses Bwayo e Christopher Sharp – filmado durante cinco anos, e concluído em 2022.
No dia em que as indicações ao Oscar foram anunciadas, estávamos em prisão domiciliar, minha esposa e eu. No outro dia é que os militares se retiraram de nossa casa.
A declaração de Bobi Wine, publicada em 8 de fevereiro de 2024, dá uma ideia da reverberação política do documentário em tela, adquirido pela National Geographic e distribuído no streaming da Disney. Poucas vezes uma produção documental teve tanto acesso à vida privada de personalidades como Bobi e sua esposa, a extraordinária Barbie Kyagulanyi. A convivência próxima do casal e entorno com a equipe de produção resultou numa concretude inédita de linguagem, raríssima na indústria do espetáculo. De certa forma, “Bobi Wine: O Presidente do Povo” superou o simulacro das aparências e restituiu, nem que seja por breves momentos, a intuição do real que move a ação política. Nas quase duas horas de projeção adentramos a cena física e espiritual que levou o artista musical Bobi Wine a desafiar o autocrata Yoweri Museveni, no poder desde 1986 obtido em um golpe militar – e candidatar-se a Presidente de Uganda.
A intimidade das imagens, de início relaxadas como num vídeo-clip, contrastam com a crescente repressão que se abateu sobre as pretensões do músico – e, em consequência, com as imagens de violência que passaram a prevalecer. A carreira de Bobi, sujeito carismático e perspicaz, é um assombro: a partir dos anos 2000, inspirado em Bob Marley e temperado por ritmos locais, afrobeat e kidandali, caiu no gosto dos ugandenses e ficou extremamente popular. Conheceu Barbie na universidade, e evoluiu para um gênero híbrido, edutainment, educação e entretenimento: ao mesmo tempo em que transmite mensagens educativas e politicamente lights, especialmente para os moradores desfavorecidos dos guetos, as favelas de Kampala, capital do país, sua música diverte a audiência. A transição para a vida política foi inevitável: contrariado com a proposta de Museveni de alterar a constituição em benefício próprio para remover o limite máximo de idade para presidentes, elegeu-se deputado em 2017.
Não adiantou, a proposta foi acatada pelo Parlamento – controlado, naturalmente, pela prática clientelista do ditador, que construiu seu percurso com eleições duvidosas, sempre com suspeitas de fraudes. Yoweri Museveni ficou conhecido como líder estudantil de esquerda que se opôs ao então ditador Idi Amin Dada – sim, ele mesmo, personagem de “O Último Rei da Escócia”, de 2006, que mandou no país entre 1971 e 79, acusado pela morte de “pelo menos 83 mil pessoas”. A ironia é que uma das principais críticas a Idi Amin era justamente o objetivo de perpetuação no poder – que Museveni retomou sem a menor cerimônia. Nas lutas no início dos anos de 1980, ele ficou conhecido como “Black Che Guevara”, granjeando admiração e respeito – inclusive de Bobi. A contenda presidencial de 2021, realizada durante a pandemia, acabou colocando como adversários Museveni e o nosso cantor-político. É a parte final de “Bobi Wine: O Presidente do Povo”, que assume um tom francamente político.
Político, sobretudo no que tange a denúncias: torturas, sequestros, prisões arbitrárias, até mesmo a derrubada da internet às vésperas da votação – não faltou nada do repertório autoritário de um regime que visa a manutenção, custe o que custar, do status quo. Num país de 47 milhões de habitantes, com extensão análoga ao estado de São Paulo, não é uma tarefa fácil. Na campanha, Bobi Wine percorreu inúmeras cidades no interior, vindo a ser um opositor formidável aos desígnios de Museveni.
A indicação de “Bobi Wine: O Presidente do Povo” ao Oscar e a difusão global do filme certamente darão alento à ação política de Bobi. Resta saber se serão suficientes para inibir a desmesurada reação do Presidente Museveni.