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Boas Intenções | Crítica

Reforçando estereótipos

Por Pedro Guedes

Durante o Festival Varilux de Cinema Francês 2019

De boas intenções, o inferno está cheio. Ok, talvez existam formas menos óbvias e mais criativas de começar uma crítica de um filme chamado “Boas Intenções”, mas a verdade é que nenhuma frase seria capaz de descrever melhor este novo trabalho do cineasta Gilles Legrand do que o ditado popular que acabei de mencionar. E quando vi, ainda nos primeiros vinte minutos do longa, uma cena onde a protagonista chega para um grupo de refugiados e falha em se provar desconstruída, gerando uma enorme discussão entre os imigrantes ali presentes, me dei conta de que aquilo ironicamente resumia todos os esforços de Legrand, que, por mais nobres que fossem, acabavam resultando num caos absoluto.

Escrito não apenas por Legrand, mas também por Léonore Confino“Boas Intenções” gira em torno de Isabelle, uma professora de francês que trabalha em um centro de serviços humanitários e, assim, acaba interagindo com diversos imigrantes que vieram refugiados de seus países. Ao ser convocada para alfabetizá-los, Isabelle se depara com várias dificuldades e aos poucos vai conhecendo as personas por trás das nacionalidades que representam, percebendo que todos aqueles estereótipos criados ao redor das mais diversas culturas do mundo não passam de visões preconceituosas e quebrando gradualmente a maneira xenófoba com que enxergava aquelas pessoas.

Ou pelo menos é isso que o filme acredita estar fazendo. Sim, porque o objetivo de “Boas Intenções” é mostrar como uma mulher (europeia, diga-se de passagem) pode aprender a desconstruir seus preconceitos através da convivência com pessoas pertencentes a cultura diferente – tudo isso através do bom humor; o que é apropriado, já que a comédia costuma ser uma forma eficaz de discutir temas sérios. Na teoria, as ambições de Legrand e Confino são admiráveis; na prática, porém, os roteiristas demonstram não entender o básico de uma boa piada politicamente incorreta: o “alvo” deve ser não a vítima ridicularizada, mas a ignorância de quem está ridicularizando. Uma coisa é rir do preconceito; outra coisa é rir das vítimas de preconceito. Trata-se de uma diferença sutil, porém fundamental para entender o fracasso deste longa, que, embora pose de “desconstruído”, nada mais faz do que reforçar velhos estereótipos.

Assim, quando o filme começa a fazer constantes piadinhas com tudo quanto é grupo étnico, o espectador sente-se não entretido, mas incomodado com a falta de responsabilidade de Legrand: ao entregar-se sem reservas a uma série interminável de gags xenófobas, o cineasta parece achar que está debochando da maneira como os refugiados são enxergados pelos preconceituosos, não percebendo que, em vez disso, o que está fazendo mesmo é debochar dos refugiados em si. (Isso porque nem citei o fato de todos estes imigrantes serem analfabetos e – vejam só! – tutelados por uma europeia.) O que resta, portanto, é o brasileiro que vive desfilando com uma camiseta da CBF, uma mulher árabe que vive sendo alvo de piadas e outros exemplos de etnocentrismo – além disso, são notáveis também os momentos em que homens observam os seios de uma motorista e, claro, o fato de boa parte das mulheres serem retratadas como estúpidas/histéricas, denotando um machismo que só piora a situação da obra.

Como se não bastasse, “Boas Intenções’ ainda é uma comédia simplesmente… sem graça: embora se proponha a contar uma história (pertencendo, portanto, ao Cinema narrativo), o roteiro de Legrand e Confino desenvolve uma trama tão frouxa que acaba soando mais como uma colagem de esquetes que não levam a lugar algum – esquetes estas que, na maior parte do tempo, são sem imaginação e pouco oferecem à atriz Agnès Jaoui (que dirigiu o recente “Praça Pública”). Para que não pareça que nenhuma gag funciona em “Boas Intenções”, há uma tentativa que até faz rir moderadamente: em certo momento, quando tenta desligar a TV do quarto de um hospital, Isabelle sem querer desliga os aparelhos que mantêm uma paciente viva.

De resto, no entanto, trata-se de uma comédia terrivelmente aborrecida, narrativamente desordenada e – o mais grave – tematicamente reprovável. A impressão que fica, por fim, é de que o título do filme nada mais é do que um “pedido de desculpas” que Gilles Legrand tentou improvisar quando terminou de montá-lo: ao ver que tinha acabado de criar um longa pavoroso, o diretor tentou despistar o resultado alegando ter tido “boas intenções” ao fazê-lo. Não colou.

2 Nota do Crítico 5 1

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