Blitz
Imagens Contrastadas
Por João Lanari Bo
Festival de Londres 2024
Steve McQueen é um artista consumado no âmbito das artes visuais – as premissas conceituais que elabora para seus trabalhos, performances e instalações têm ressonância intensa com o cinema. McQueen também é um cineasta exímio, produzindo no mainstream obras que ambicionam grandes públicos, sem perder o rigor especulativo das realizações artísticas. Não é tarefa trivial, requer habilidade permanente para lidar com dois circuitos de produção distintos, de complexidades específicas. “Blitz”, de 2024, lançado no streaming em nível global e algumas poucas e selecionadas salas, é mais uma escala nessa confluência entre erudito e popular.
As dificuldades ocorrem igualmente nos discursos de recepção crítica. Como sintonizar o que se passa na cabeça do realizador – de filmes e instalações – ao conceber suas intervenções, sejam no cinema ou nas artes? “Blitz” apresenta-se com o background clássico dos filmes de guerra, enfocando os bombardeios seguidos da Luftwaffe nazista sobre Londres, e a resistência da população civil – foram anos difíceis, uma das alternativas era mandar as crianças para o interior, afastá-las desse terror. George (Elliott Heffernan), garoto birracial, filho de pai negro oriundo de Granada – àquela altura colônia britânica – e mãe branca, é evacuado num trem cheio de crianças, algumas hostis, e não pensa duas vezes: pula do vagão e volta a pé para a capital.
O que se segue é uma narrativa de apelo emocional, no clima dos romances de Charles Dickens, com protagonistas infanto-juvenis encarando as agruras do mundo adulto. O virtuosismo de McQueen, a captura dos detalhes, a imponência dos planos gerais – com auxílio de efeitos visuais CGI – ilustram a saga de George no ambiente caótico da guerra. O que seria um clichê habitual, entretanto, é sabotado pela opção de colocar no centro da ação um personagem negro, algo praticamente invisível no caudaloso acervo de filmes que se valem desse cenário. Um contraste visual, de repercussões dramáticas inusitadas.
“Blitz” se organiza, a partir dessa opção, como uma colcha de retalhos de episódios guiados pelo olhar angustiado de George, separado da mãe pela conjuntura, mas também angustiado pela separação do pai, que não chegou a conhecer. O acolhimento afetivo de Rita (Saoirse Ronan) – a mãe, loura e atraente, empregada em uma fábrica de munições – é a âncora que sustenta sua obstinação pelo retorno ao lar, complementada pelo avô, pianista e afetuoso. Em casa, portanto, reina o afeto: nas ruas, a iminência do preconceito racial – com as surpresas que sinalizam igualmente visibilidades não usuais, como o extraordinário Ife, nigeriano (outra ex-colônia) que fiscaliza as noites da cidade para, entre outras funções, garantir o black-out fundamental contra os bombardeios. Mais do que guiar George no caos do momento, ele ocupa, ainda que provisoriamente, a figura paterna ausente do garoto, e no limite, a consciência mesma da negritude.
O enredo é ficcional, informa o diretor, mas pessoas reais também estão em cena. Uma delas é o líder negro de big band jazzística famoso à época, Ken “Snakehips” Johnson (interpretado pelo ator Devon McKenzie-Smith). Ele tinha 26 anos quando animava a noite no elegante Café de Paris, e as bombas mataram músicos e pelo menos 33 ouvintes e dançarinos – no filme, a cena é pontuada pelo saque dos cadáveres pela gangue que explorava George, naquela altura.
Outra é o ativista Mickey Davis, então com 29 anos, que assumiu como líder não-oficial de um abrigo subterrâneo, e logo tornou-se referência: constituiu grupos de voluntários, montou unidades de primeiros socorros, persuadiu um conhecido médico a fazer viagem de duas horas todos os dias para passar as noites no local e conseguiu doações de medicamentos e equipamentos. Segundo McQueen, uma jornalista americana foi ao abrigo de Mickey e disse que aquela foi a primeira vez que viu democracia em ação real. “Mickey o anão”, como era conhecido, foi um dos arquitetos do NHS (sistema britânico de saúde) no pós-guerra.
Nesse mundo de luz e sombras das grandes produções cinematográficas, ainda sobrou espaço para curtas interpolações: em alguns breves instantes, um campo de margaridas em preto e branco aparece, meio tremido. Trata-se de um plano extraído de “Emak-Bakia”, uma das joias do cinema surrealista, realizada em 1926 por Man Ray – carregado de técnicas de contraste como dupla exposição da imagem, soft focus e rayographs (imagem fotográfica feita sem câmera, colocando objetos diretamente na superfície de material sensível à luz).
Na primeira sessão de “Emak-Bakia”, alguém se levantou e reclamou que o filme estava dando dor de cabeça e machucando seus olhos: mandaram-no calar a boca, começou uma briga que acabou na rua, só interrompida pela ação da polícia.