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Beau Tem Medo

Uma fábula de autoindulgência, caos e retorno para casa

Por Pedro Sales

Beau Tem Medo

Filmes como “Beau Tem Medo” nunca são fáceis de criticar. Isso ocorre por diversos motivos. Em primeiro lugar, o longa está propício a uma recepção polarizada, no estilo “ame ou odeie”. Segundo, é bem complicado encapsular e definir o que o filme é. Por meio de sua complexidade, que se embrenha no fantástico, a obra é muitas coisas: comédia, drama, terror. O maior desafio, portanto, é não interferir na experiência do espectador, falar o mínimo possível para que ele se surpreenda sozinho. O diretor Ari Aster, de “Hereditário” e “Midsommar“, chega ao seu terceiro filme com novas pretensões. Dispondo do maior orçamento da história da produtora A24, o cineasta se distancia do sobrenatural-demoníaco e do terror-solar-nórdico e dá vez às paranoias abstratas e desorientadoras do protagonista. Apesar disso, essa temática diferente já se apresentava na filmografia do diretor no curta “Beau” – o qual inspirou o longa e por isso foi retirado do YouTube pela produtora meses antes da estreia do filme. Aos que esperam a mesma parcela de terror encontrada nos longas anteriores e uma estrutura mais convencional, saiba que aqui existe muito mais um desejo de análise do medo do que um desejo de infligir medo.

Beau Wasserman (Joaquin Phoenix) é um homem de meia idade que lida com a ansiedade, culpa e um medo patológico do exterior de seu apartamento. O personagem é compelido a enfrentar esses temores quando recebe a notícia da morte de sua mãe Mona (Patti LuPone). O que se sucede é um retorno para casa, uma trama simples, elementar, e que está em nossa sociedade há milênios. O Ulisses nada heroico e que vive à base de ansiolíticos vai ao encontro da Penélope-mãe já sem vida. O que Aster faz, entretanto, é subverter a simplicidade narrativa com a exploração fantasiosa e absurda dos medos do protagonista. A introdução, por exemplo, é bastante eficaz em consolidar sentimentos onipresentes na trama: o desconforto e confusão. Na cidade desarranjada – uma sátira de Nova York –  em que Beau vive, o mal espreita ao lado e se manifesta como um tatuado que o persegue ou um serial killer idoso, nu e circuncidado – o último detalhe é importante e reiterado até mesmo na TV. A sensação de perigo externo é bastante evidente. O cenário reforça a decadência do lugar, o trabalho sonoro leva à crescente agonia e ansiedade que passa a acometer o próprio espectador e a câmera se move com dinamicidade transmitindo a loucura que são as ruas.

Nesse último aspecto, Aster mantém sua noção apurada de espacialidade e fotografia que já aparecia nos longas anteriores. Os travelings servem como uma transição para os cenários, a profundidade de campo permite ações diferentes em simultaneidade – quase sempre com um efeito cômico –, os match cuts elipsam os saltos temporais e os planos-sequências reforçam essa palpitação ansiosa e a alta carga de imprevisibilidade que acompanha a rodagem de “Beau Tem Medo“. Dessa forma, as estilizações não soam como mero exercício formal, mas como uma forma de amplificar os sentimentos causados, sobretudo a confusão, elemento central do roteiro. A narrativa se solta das amarras da verossimilhança e toma um caminho episódico, em um fluxo labiríntico e alucinante. Beau se insere em vários ambientes, alguns oníricos (no geral, pesadelos), controlados, fantásticos e de memórias. Todas as etapas para o personagem chegar do ponto A ao ponto B. Tendo em vista esse caráter surreal que toma a obra, a fruição e conexão dependem muito do espectador “abraçar a ideia”, o que não é tão fácil e simples.

Um ponto divisivo no filme é sua constante irregularidade. A obra mantém sempre a chave da bizarrice ligada. Em muitos momentos, aliás, nem se leva a sério, lança mão de piadas absurdas e provoca o riso nervoso, mas isso é feito em altos e baixos. A introdução, por exemplo, que estabelece o temor de sair de casa e a preocupação em ter a privacidade violada é muito boa. Enquanto isso, a conclusão para a jornada homérica de Beau, para mim, não tem o mesmo peso. Essa variação entre “episódios” interessantes e maçantes, tem outro ponto importante: a duração. É plenamente possível imaginar o filme com cerca de 40 minutos a menos. Talvez ficaria mais sucinto, impactante e seria mais “regular” na qualidade? Essas conjecturas são naturais e surgem quando a experiência se torna cansativa. No entanto, a escolha pelas três horas é um fato atípico, difícil e até louvável. A autonomia artística de Ari Aster foi respeitada, ele teve total liberdade para contar sua história, apesar da temática que tende ao bizarro e sua longa duração. Não houve limites para sua criatividade seja narrativa ou formal (exploração da teatralidade e animação).

Além das digressões surrealistas, “Beau Tem Medo” desenvolve um subtexto muito sóbrio acerca da maternidade, assim como o cineasta faz em “Hereditário”. Se Beau é traumatizado, se desculpa por tudo e aceita passivamente tudo que lhe é infligido, todos esses fatores foram fortemente influenciados pela sua criação e relação com a mãe. Assim, a manipulação maternal e a superproteção funcionaram como uma castração da personalidade do protagonista, do que ele poderia vir a ser. Os flashbacks e sonhos, filmados com certo artificialismo idealizado por memórias distantes, evidenciam como a influência materna interferiu no desenvolvimento de Beau. O medo de se contrapor à mãe, questioná-la, magoá-la ou mesmo sair do seu controle se tornaram confidências com seu terapeuta quase 40 anos depois. Inclusive, para aqueles que adoram colocar o filme no divã, teorizar o significado das metáforas e arrancar análises freudianas dos personagens, aqui vai ter um verdadeiro deleite. Se ele era Ulisses antes, por que não Édipo agora?

Antes citei um ponto de divisão na recepção da obra, porém se tem algo que todos podem concordar (os que amaram, os que odiaram e os que não sabem se gostaram ou não, como eu) é a excelente performance de Joaquin Phoenix. O ator incorpora esse adulto fracassado, autoindulgente e com medo de tudo que lhe foge o controle. A fisicalidade de Phoenix, que engordou para o papel, também demonstra esse modo desajeitado de se portar, ele corre em desespero, grita uns lamentos e parece a beira de um colapso diante do mundo maluco ao redor. Apesar da loucura exterior e o fato de ele ser um narrador não confiável, a diegese do filme também dá esse aspecto a todos. Os personagens secundários Grace (Amy Ryan) e Roger (Nathan Lane) não parecem mais sãos que o protagonista, o caos é onipresente no mundo de Beau.

Beau Tem Medo” é definitivamente uma experiência diferente, para o bem ou para o mal. O longa intriga e parece convidar o espectador a vê-lo novamente. Mas, a simbologia metafórica de Aster, para problemas maternos ou para a ansiedade em si, mesmo podendo ser um elemento “genial” para alguns, para mim é só cansativa. Os diferentes episódios, também, e sua consequente variação de qualidade são outro ponto que me distancia do filme. No entanto, como pontuei, existem altos e baixos. A confusão, o caos e a ansiedade em razão da imprevisibilidade do que será mostrado em cena são elementos primordiais para o longa, assim como a performance de Phoenix e o interesse formal do cineasta. No geral, o que fica de “Beau Tem Medo” é um forte exercício de autorismo com o aparato e apoio de uma das produtoras mais promissoras do cinema estadunidense, a A24, que pode ser lido também como uma incursão megalomaníaca e pretensiosa pelos seus detratores. A irregularidade episódica contrastada com o bom trato do bizarro e surreal me dá o gosto amargo de que o potencial existia e que o filme poderia ser melhor.

2 Nota do Crítico 5 1

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