Barbie
Emancipação fabulosa de Barbie (e Ken)
Por Pedro Sales
Criada em 1959, a boneca Barbie revolucionou o mercado de brinquedos em todo o mundo, mesmo com o problemático padrão inatingível de beleza. O sucesso do produto naturalmente também se estendeu para as telonas, o hype em volta do filme é mundial e impulsionado nas redes sociais. No Brasil, o longa bateu o recorde de maior pré-venda da história da Warner Bros. no país. A diretora Greta Gerwig, de “Lady Bird” e “Adoráveis Mulheres”, felizmente contribui à altura das expectativas dos aficionados pela boneca. Em “Barbie”, dois mundos são contrastados. O ideal de dominação feminina máxima, mas absolutamente cor de rosa, representado pela Barbielândia. E um mundo um pouco mais diferente, em que o patriarcado impera e as posições de poder são majoritariamente masculinas, o mundo real. O que acontece quando esses dois diferentes universos se convergem é a questão central do longa, com um comentário mordaz sobre a sociedade e um humor onipresente.
Barbie (Margot Robbie) vive na Barbielândia rodeada por outras Barbies, a física (Emma Mackey), a presidente (Issa Rae), a sereia (Dua Lipa) e tantas outras. Ah, e também tem vários Kens, mas um deles é apenas Ken (Ryan Gosling). Tudo é muito perfeito nesse mundo de plástico, coberto por cores vívidas na paleta cor de rosa. Quando Barbie tem pensamentos intrusivos sobre a morte, seu pé se achata e aparecem celulites em sua perna, ela percebe que tudo está errado. A solução é ir para o mundo real, encontrar sua dona e resolver esse problema. O artificialismo e perfeição do mundo são explorados na introdução do longa. Todos os dias são os melhores dias do mundo, festa na praia de dia com os Kens de líderes de torcida e à noite mais festas, agora com brilhos, danças em números cuidadosamente bem coreografados. Visualmente, o design de produção reproduz as Casas dos Sonhos das Barbies e todos os acessórios que vêm com as bonecas. Os cenários, por sua vez, parecem pintados à mão e a própria interação dos personagens com o espaço reforça a plasticidade desses lugares. A fotografia de Rodrigo Prieto consegue emular esse sol eterno e a súbita noite, assim como ocorre a passagem de tempo em uma brincadeira de criança.
A comédia é um pilar fundamental de “Barbie”. O filme abraça o gênero e, por meio de seu texto afiado, arranca facilmente risadas do público. Situações como o duelo de Kens e o incessante “Hi, Barbie!”, e personagens como a Barbie Estranha (Kate McKinnon) e Adam (Michael Cera) são geradores naturais de humor. Inclusive, vale dizer que as atuações concentram um humor corporal bem demarcado, Robbie e Gosling, que estão sempre ótimos em cena, em muitos momentos se movem como bonecos. Porém, a carga cômica também adquire um aspecto crítico, sobretudo à sociedade patriarcal e ao capitalismo, nem a Mattel escapa – mas claro, lucrando muito com o filme. Bonecas descontinuadas são alvos dos comentários ácidos e pontuais da narradora . O corporativismo bobo e padronizado da marca, com cenários que lembram “Playtime” de Jacques Tati, colocam os executivos como vilões caricatos e cegos pelo lucro, o que é totalmente condizente com o tom proposto por Greta Gerwig. O casting de Will Ferrell para tal papel, por exemplo, cai como uma luva pelo poder simbólico do ator para este tipo de personagem.
Entretanto, por mais que o cômico sempre esteja em voga durante o longa, a cineasta posiciona um comentário feminista acerca dos papéis sociais de gênero muito claro e pertinente. A ida para o mundo real serve de deslumbramento e também decepção. Ken percebe que o mundo é masculino, inclusive o tema “Also Sprach Zarathustra”, de “2001”, reaparece nessa tomada de consciência. Extasiado por um mundo de possibilidades, de cavalos, carros e cervejas, ele deseja levar isso para sua realidade, criar uma ‘Kenlândia”, reino de masculinidade tóxica onde o mundo real penetra o idealizado. Enquanto Barbie encontra seu universo e cosmovisão em desencanto ao descobrir o machismo, a objetificação da mulher e seu papel em uma sociedade marcada pelo patriarcado, coisas impensáveis no perfeito mundo cor de rosa. A autodescoberta da personagem, portanto, ultrapassa os pensamentos intrusivos e a celulite na perna. Com auxílio da humana Gloria (America Ferrera), Barbie entende o que significa ser mulher no mundo real e ela deve lidar com essa emancipação fabulosa do mundo plástico e encontrar seu devido lugar e ajudar as outras Barbies a encontrarem os delas. O mesmo vale também para Ken, que tenta se provar como símbolo de masculinidade e poder, mas que acredita existir apenas quando visto por Barbie.
“Barbie” é uma obra divertida, colorida e alto astral que também aposta em momentos de reflexão crítica. O próprio papel da boneca é questionado no longa. Afinal, por mais que a Barbie tenha inúmeras profissões, ela ainda reforça um certo padrão de beleza. Nada disso é novidade, a diversidade étnica e de corpos nas bonecas, ao longo dos anos, surgiu por isso, mas este continua sendo um tópico de extrema importância para Barbie entender o que simboliza ser a Barbie Estereotipada nesse jogo metalinguístico da boneca no mundo real. A comédia é bem dosada e os momentos musicais são soberbos, exagerados como devem ser – lamento aos detratores do gênero. Aliás, o exagero é outro ponto necessário para a construção do longa. Gerwig não omite o cafona e o artificialismo, isso seria esterilizar o potencial criativo e visual da obra, que é bastante idiossincrático. Da mesma forma, o discurso da cineasta de autodescoberta pelo contraste entre real e imaginário (ideal) não fica tão preso nos clichês – apesar de usá-los -, principalmente pela ressignificação do produto que é proposta. A trajetória da personagem, então, acaba se propondo a ser uma “lição”, mas nem por isso a obra perde força, inclusive uma das melhores cenas diz respeito exatamente a isso. Ou seja, negar a perfeição e tudo que isso significa é dar a liberdade de finalmente se tornar quem devia ser.