Banel e Adama
O amor em Senegal pelo cinema de gênero
Por Fabricio Duque
Durante o Festival de Cannes 2023
Exibido na mostra competitiva a Palma de Ouro do Festival de Cannes 2023, “Banel e Adama”, com a menor duração entre os filmes dessa seleção (uma hora e vinte e sete minutos), é acima de tudo uma história de amor intenso e profundo, por uma ambiência metafísica de atmosfera sobrenatural, em que essa paixão galga o estágio da obsessão. Há algo irracional, impulsivo, infantil, ilógico, compulsivo e idealizado demais nesse objeto de desejo. E tudo é servido ao espectador numa comunidade envolta às tradições de ancestrais evocados, de curandeiras costumeiras e de premonições que tornam presentes as manifestações do invisível (uma força iminente chegando). Sua personagem segue toda uma vida cultivando esse amor e se entrega completamente. Dirigido pela realizadora senegalesa Ramata-Toulaye Sy, e seu primeiro longa-metragem (resultado de seu trabalho de conclusão de curso da faculdade, La Fémis),“Banel e Adama” traz uma narrativa sensorial de sonho acordado, como se tudo fosse uma grande fábula, entre flashbacks, músicas que lembram israelenses e transes despertos à realidade.
A diretora, que também roteirizou o filme, quer criar uma aura estética em “Banel e Adama”, por uma fotografia saturada ao constraste de brilho reluzente. Ramata-Toulaye Sy quer realmente inovar, tanto na imagem, quanto nos créditos iniciais que passam invertidos. A história acontece por confrontos e atitudes. Os mais velhos julgam e definem a “vida dele”, o “grande amor” de nossa personagem principal. E ela quer se rebelar. Quer lutar para manter sua paixão por perto. Sim, todo o visual é milimetricamente construído, gerando um visual poético, especialmente nas cenas com a árvore. O que encontramos aqui? Duas pessoas totalmente diferentes, mas que resolveram se juntar para saber se dão certo. Ela mais determinada, briguenta e quer “ir embora dali”. E ele, perdido, quer ficar e não pouco “o que ofereceram”.
Cada vez “Banel e Adama” adentra mais no cinema de gênero pelo sobrenatural psicológico. Possessões acontecem com maior frequência. Barulho do vento, por exemplo, fica mais perceptivo e mais visceral nessas existências coloquiais e cotidianas. Os pássaros voam com medo ou em surtos ao estilo Alfred Hitchcock de ser. Parece que uma maldição foi lançada entre o dever religioso e o destino que ela escolhe percorrer. Sim, toda essa metáfora é sobre mudança. Sobre acordar da cegueira. Sobre ganhar autonomia para viver a subjetividade da própria individualidade. Ela sofre todas as cobranças de ter que ser a esposa que todos esperam, como a de engravidar logo. Nesse cenário de deserto numa aldeia remota no norte do Senegal, ela sente ciúmes.
Mas “Banel e Adama” prolonga muito toda a repetição dos mesmos artifícios de “filmes mais estéticos que querem entrar na competição de Cannes”. Torna-se over. Outra extensão é o desdobramento da própria história. Já entendemos que o mal chegou. Que ela tem essa sensação de “fim do mundo” mostrado previamente. A tempestade de areia é uma delas. Para os outros, ela está “maluca”. Para eles, Alá está os tentando para cada um ali manter sua fé. Assim, o longa-metragem quer nos oferecer o mal personificado. Da chegada de um “AntiCristo”, que influencia a perversão contra seres animalescos da natureza. E quer criticar todo esse cruel fanatismo religioso que molda os indivíduos à luz dos mandamentos divinos, não se dando conta que todos ali são diferentes. Essas agressivas ações podem despertar a loucura. Como foi o caso deste filme. A protagonista alimenta a impossibilidade da liberdade até que o limite de sua tolerância explode e seu cérebro clama para se libertar de toda essa prisão. “O tema da loucura é crucial no filme. No início, vemos Banel apenas como uma rebelde. Ela usa camisa de homem, ela usa cabelo curto, ela se libertou de usar lenço. Mas nesta primeira parte da história, permanecemos intencionalmente numa narração bastante clássica onde a mulher marca sua vontade de se libertar das tradições”, disse a diretora no release oficial aqui em Cannes.
Ramata-Toulaye Sy também nos ajuda a entender melhor seu filme quando dia: “Eu queria escrever uma grande e trágica história de amor; uma história em que todos pudessem se reconhecer. E eu queria que acontecesse no Senegal, país de origem dos meus pais. Eu vi isso como um gesto político. Eu admito que a palavra é forte, mas me parece apropriada. Na época em que eu estava trabalhando no roteiro, eu tinha a sensação de que a maioria dos filmes africanos contemporâneos que descobri eram sobre violência, guerra, terrorismo, pobreza… tudo de uma forma naturalista. O cinema de gênero teve dificuldade em encontrar seu lugar: claro que houve algumas propostas, mas muito poucas. É a partir dessa reflexão que meu desejo de fazer um filme universal, que falasse para os africanos, mas não só para eles, ficou claro para mim. Sou apaixonado por literatura desde era criança e sonhava em criar um grande tragédia, misturada com realismo mágico, poesia, mas também com os códigos do conto. Meu desejo era inventar uma personagem tão mítica quanto Medeia ou Fedra. É claro que África tem muitas figuras de ficção bem conhecidas, mas nenhuma que vá além das fronteiras do continente. A universalidade é um noção essencial para mim”, finaliza.