Aves de Rapina: Arlequina e sua Emancipação Fantabulosa
Encontros sem Desencontros
Por Jorge Cruz
“Aves de Rapina: Arlequina e sua Emancipação Fantabulosa“, sem o subtítulo a partir de agora, consegue a unidade que “Esquadrão Suicida” não tenta sequer atingir e ainda ser mais scorsesiano do que a emulação canhestra de Todd Phillips em “Coringa“. De início, o espectador leva a crer que será situado em uma zona próxima do deboche constante de “Deadpool“. Uma introdução que usa a animação como linguagem e parecia abandonar de certa forma a estética do atual Universo Estendido DC. É até interessante essa subversão nos primeiros minutos, algo que merece ser referenciado, eis que muitos profissionais da imprensa sequer assistiram a essa parte na sessão promovida pela Warner com esse objetivo. Vale mencionar a quantidade de atrasados, pessoas que simplesmente perdem vinte minutos de uma obra e depois tem a coragem de redigir críticas com ares de entendedores.
A roteirista Christina Hodson faz um importante trabalho de construção do protagonismo negado à Arlequina (Margot Robbie) no filme dirigido por David Ayer e lançado em 2016. Esse prólogo já faz essa transferência com eficiência, além de alfinetar o ex-parceiro da personagem, dizendo que muitos dos feitos do Coringa, na verdade, foram ideias dela – uma usurpação de notoriedade muito comum entre casais, porém, feitas por homens sobre as mulheres. Já a diretora Cathy Yan, como era de se esperar, pauta seu trabalho na ausência de objetificação feminina, ao mesmo tempo que promove as cenas de ação como se veterana fosse. Esqueça as exibições desnecessárias dos corpos das atrizes ou um figurino mais provocante do que prático. A forma aqui é pensada para criar uma representação coerente. Nessa produção, Arlequina é bem menos idiotizada e assume uma persona muita mais combativa e, por que não?, justa. Quando vai a campo nos faz lembrar a Nikita de Anne Parillaud em “Nikita: Criada para Matar“, que Luc Besson dirigiu em 1991. Para os mais jovens, é algo mais próxima de “Atômica” (2017).
Há um pequeno senão em “Aves de Rapina” e é justamento o único personagem masculino de destaque, vejam só. O Roman Sionis / Máscara Negra de Ewan McGregor não tem força pela necessidade de introduzir quatro das cinco mulheres do grupo. Todas elas têm seus momentos e suas intenções são bem fundamentadas. Já o vilão é apenas um cara que está ali promovendo o caos. Justamente diante dessa retirada de peso do antagonista, podemos classificar a obra como uma história sobre a criação de laços – de inúmeros tipos e por diversos motivos – do que de luta do bem contra o mal.
Ao assumir essa perspectiva de obra de origem das aves de rapina tendo Arlequina como fio condutor, o texto de Hodson flui de maneira notável. Sem perder o controle da perspectiva da personagem de Robbie, ela surge como uma narradora tão sagaz e, por vezes, interativa, quanto alguns filmes de Martin Scorsese. Pode parecer irônico, mas não apenas esse elemento, como outros remontam muito mais ao cineasta do que o celebrado filme estrelado por Joaquin Phoenix. Tanto que a soturnez de Gotham City passa a tomar conta da fotografia apenas na segunda metade. Na dinâmica introdutória, “Aves de Rapina” é bem menos caricato, ousa uma visceralidade que o verniz da terra de Bruce Wayne geralmente não permite. Todavia, é importante esse retorno às origens no ato final – até para que Arlequina se destaque por ser a única cor, a única vida em cena com seu figurino mais vibrante. É quando Cathy Yan entende que precisa dar um destino diferente do óbvio para a protagonista de ocasião, precisa destacá-la de alguma maneira para que a missão seja cumprida.
O carisma de Margot Robbie segura com folga o longa-metragem. Ao tentar criar um diálogo com as questões de feminilidade (emancipação é uma das palavras do seu longo título) “Aves de Rapina” acerta, mais uma vez, em cheio. Brinca com a sensualização da imagem da Arlequina quando ela só quer comer um “podrão” barato, cheio de queijo e bacon – mas a montagem coloca a voz grossa de Barry White marcando presença. Traz uma abordagem interessante sobre os abusos e assédios passíveis de serem sofridos por qualquer mulher em situação vulnerável, incluindo a forte e destruidora Arlequina e, claro, vai criando ligações afetivas entre as personagens em virtude de suas experiências.
Pensando em como a Warner trata a DC em seus produtos, o longa-metragem chega ainda mais perto da diversão fácil com uma fina camada de representatividade dos seriados da CW, algo que “Esquadrão Suicida” também tentava, com menos êxito. Há até a reinserção da personagem de Dinah Lance / Canário Negra (Jurnee Smollett-Bell), que fez uma confusão danada em suas idas e vindas em “Arrow“. Sua meta-humanidade é pouco (porém, bem) explorada, o que permite que um eventual filme de origem dela seja pensado no futuro. A formatação de uma saga consistente envolvendo as aves de rapina está ali, dependendo apenas da aceitação do público para que seja dada continuidade. Na entressafra de importantes lançamentos, é provável que muitos milhões entrem em caixa nas próximas semanas e dê sobrevida aos planos da Warner.
A trilha sonora se vale de canções pop, um artifício cansado, mas que não chega a incomodar dada a parcimonia com a qual é utilizado. Além do já citado Barry White, há a versão original de “Rollecoaster of Love” do Ohio Players (que os Red Hot Chilli Peppers regravaram para ser inserido no clássico perdido “Beavis e Butt-head Detonam a América” de 1996) e duas ressignicações: na introdução de Canário Negra com “It’s a Man’s Man’s Man’s World” de James Brown e na divertida montagem de Diamonds are a Girl’s Best Friend fazendo referência à cena de Marilyn Monroe em “Os Homens Preferem as Loiras” (1953).
Duas questões incomodam um pouco em “Aves de Rapina” em um parágrafo onde o terreno dos tais spoilers será invadido. A primeira se dá no abandono da estética crua dentro da primeira metade, em que a produção se apresenta quase como um “filme de máfia” em uma cena onde Arlequina, tão convicta de sua violência, promove uma espécie de color race dentro de uma delegacia. Visualmente é interessante a sequência, muito bem montada (como todas as cenas de ação), mas incoerente com as convenções do longa-metragem. A segunda questão é no campo da verossimilhança. Acontece quando a polícia está a ponto de invadir a casa da protagonista e, após uma explosão provocada pela janela, não há mais vestígios dos agentes da lei. Há uma situação mal resolvida ali.
Afastados esses pontos, há na condução do filme uma criação de situação-limite bem definida. Ele convence ao transformar em aliadas mulheres com motivações tão diferentes. Uma criança sem referências, mercenárias, justiceira e agente da lei. A heterogeneidade do grupo se dá por classe social e raça. Quando chegamos no clímax do longa-metragem, quando Gotham ganha mais espaço (como já foi dito), aquela reunião não parece anacrônica. Um quebra-cabeça longe de ser de montagem simples e, mesmo assim, se completa como mágica diante de nossos olhos.
Porém, o que torna essa produção um produto tão contemporâneo é a formulação de alguns lampejos de humanidade sem passar pela covardia de “Coringa”, pela moral exacerbada de qualquer filme da Marvel ou pela hipocrisia de outros tantos blockbusters norte-americanos. São momentos como a preocupação de Helena Bertinelli / Caçadora (Mary Elizabeth Winstead) em se tirar da zona de conflito Cassandra Cain (Ella Jay Basco). Como se os traumas infantis e juvenis sofridos por aquela, Bruce Wayne e Oliver Queen não merecessem ser repetidos. Não é, como se poderia imaginar, um esplendor de cinema. Até porque nunca foi vendido e nunca se pretende ser assim (alô, Todd!). Não se deixe levar por rankings e classificações reducionistas. Se achar válido uma sentença, fique com essa: “Aves de Rapina” bate fácil muitos traseiros.