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Atlas

Autoconsciência incontrolável

Por João Lanari Bo

Atlas

Não era uma tarefa simples para os realizadores de “Atlas”, o longa que a Netflix acaba de lançar na sua plataforma. Por um lado, é mais uma aventura que combina parâmetros clássicos da jornada dos heróis com parafernália imagética que visa o arrebatamento visual pela espetacularização tecnológica – ou seja, receita mais do que conhecida e saturada (Cinema não é uma tecnologia, é uma ideia, disse George Lucas semana passada em Cannes). Por outro, é uma incursão em um tema altamente complexo e desafiador, que gera ansiedades crescentes em boa parte da população mundial, sobretudo aquela conectada ao famigerado mundo da internet – o que nos espera com a eclosão da Inteligência Artificial, conhecida pelo acrônimo em inglês, AI, artificial intelligence?

Mesmo os habitantes da periferia do capitalismo, como os países do chamado sul global, onde se inclui o Brasil, pressentem na carne e no osso que se aproxima um tsunami. Qual é o temor do momento, o desconhecido que nos espreita? Nove em dez estrelas do cinema diriam, claro, é a Inteligência Artificial: quantos trabalhadores vão perder seus empregos, quantos advogados vão sobreviver à padronização e agilização de sentenças, quantos roteiristas de cinema e TV vão conseguir resistir ao que se espera com a inacreditável facilidade que tornará viáveis os enredos mais audaciosos e inovadores? E o pior: o pavor de que a AI progrida em termos de inteligência tão rapidamente que se tornará consciente e agirá fora do controle dos humanos – possivelmente de forma maliciosa.

Atlas” é o nome da personagem principal, encarnada por Jennifer Lopez, portadora de um trauma fundador, recalcado desde a tenra infância – quando viu a mãe-cientista ser assassinada pela sua criação quase-perfeita, um robô dotado de sensibilidade humana integrado no círculo afetivo familiar – com aparência, é claro, de … chinês! O grande vilão na jornada da heroína, vivido pelo galã Simu Liu, não poderia ser outra coisa senão um chinês, e funciona como lembrete geopolítico contemporâneo (junto com a AI, a maior ameaça que desponta no horizonte dos norte-americanos é o poderio da terra de Mao Tsé-tung). Afinal, o TikTok está prestes a ser expulso dos EUA, sob a acusação de espionagem! Escolher um chinês é uma opção também exaustivamente usada – antes eram russos ou marcianos, ou assemelhados – e é também um ato falho que empobrece o enredo, ou melhor, remete o filme a um gênero de ficção científica popular nos anos 50, época de medos coletivos e Guerra Fria intensa.

Remete, enfim, a uma estrutura dramática ingênua, articulada em torno de sentimentalismos casuais e artificiais – com pouca ou nenhuma inteligência. Nesse sentido, “Atlas” reivindica um imaginário retrô, infantilizado, que soa paradoxalmente contraditório com a atualidade do tema, Inteligência Artificial. Talvez seja por essa incongruência que a crítica tenha massacrado o filme no seu lançamento – o site agregador Rotten Tomatoes registrou apenas 19% de resenhas favoráveis.

Uma dos poucos recursos estilísticos do filme com certo sabor de novidade é a utilização das conexões neurais como dispositivo para ampliar a potência cognitiva dos personagens – e dos robôs. Por meio de links a mente dos humanos se deixa invadir pelo vasto depositário de dados e soluções da AI – para o bem e para o mal, como desconfia Atlas. Tal possibilidade, como se sabe, não é mais uma mera fantasia: cientistas têm se debruçado sobre o assunto, e um empresário-marketeiro como Elon Musk farejou o potencial econômico das interfaces neurais, com a fusão entre máquinas e cérebros humanos, permitindo que pessoas possam operar computadores usando somente seus pensamentos, de forma mais rápida do que com as mãos.

Em 2017, Musk anunciou seu investimento na startup Neuralink, que surgiu com o objetivo de implantar chips nos cérebros de humanos, desenvolvendo uma tecnologia de interação cérebro-computador.

Como a AI foi originalmente inventada como uma versão computadorizada do cérebro humano, e dado o fato de que os cérebros humanos tendem a ser conscientes enquanto estão vivos, cabe a pergunta: a AI pode se tornar consciente? Esta é uma questão em aberto, que atormentou Atlas em sua jornada ​​e é objeto de debate constante entre cientistas da computação, cientistas cognitivos e filósofos.

A resposta, por enquanto, é curta: ninguém sabe. A AI consciente teria consequências inimagináveis. E se, como era o objetivo de Harlan, o robô-com-aspecto-de-chinês que matou a mãe de Atlas, uma AI decidir matar metade da população humana da Terra e tornar a metade restante em escravos?

2 Nota do Crítico 5 1

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