Assassinos da Lua das Flores
O épico de uma sociedade invertida
Por Fabricio Duque
Durante o Festival de Cannes 2023
Em 20 de maio de 2023 aconteceu na 76a edição do Festival de Cannes a primeira exibição mundial do novo filme de Martin Scorsese (que dispensa apresentação), “Assassinos da Lua das Flores”, que divide o roteiro com Eric Roth, baseado no livro homônimo escrito pelo jornalista norte americano David Grann e tendo, no elenco, o ator Leonardo diCaprio. Sim, e como era de se esperar, esse longa-metragem, que juntou Paramount (distribuição) e Apple (produto original), foi o evento mais concorrido da maratona cinematográfica na costa azul francesa. Com quase três horas e meia de duração, “Assassinos da Lua das Flores” é um épico sobre os assassinatos da aristocrática tribo indígena Osage, em 1920.
Assim como no livro, Scorsese quer trazer à tona, por meio ficcional, a intimista subjetividade humanizada dos ingênuos indígenas versus a pragmática crueldade ofensiva dos poderosos brancos. Aqui, a narrativa, que infere um que de “Apocalyse Now”, é de construção situacional de indígenas ricos que “descobriram” antes o petróleo (o “ouro negro”) em suas terras, e que realizam tradicionais rituais indígenas de morte (estágio visto de forma “diferente”, porque os “liberta”) em uma fazenda gigante. E se a sociedade dominante fosse indígena e os empregados, brancos? A solução então do “sucesso” inverte-se: brancos casam-se com indígenas para terem futuros e “ficarem ricos”, bem à moda de “Romeu e Julieta”, de Shakespeare, só bem mais eticamente despudorada. Mortes acontecem e investigações começam, entre tempestades fortes, períodos quietos, música country, preconceitos machistas e premonições-avisos.
É, a história poderia se tornar mais um exemplar comum se não fosse o metódico olhar cinéfilo de Scorsese, que transforma cenas em planos-cinema (de precisão de luz e sombras; exterior e interior – a fotografia atravessada do fogo, por exemplo), ora simbólicos, ora existencialistas, ora contemplativos, ora quietos, ora agressivamente rápidos, ora sensoriais, ora de mise-en-scène caótica (a la “Gangues de Nova Iorque”), ora iminentes, ora etéreos, ora extremamente lentos e ora com isso tudo junto e misturado, como por exemplo, o pássaro que representa a ancestralidade de um povo. “Assassinos da Lua das Flores” é tão ensaiado em sua composição, que mais parece um teatro de viés realista. Assim, todo esse épico traz a causa e a consequência da História. Barraqueiros e a máfia. Fellows e Buddies. Ganância, acordos financeiros e “passadas de perna” de um “orientador” (o veterano, nesse tipo de caso, Robert De Niro). “Os Osage têm a pior terra, mas levaram o melhor sobre todos”, diz-se. Por que isso incomoda? Por que a “riqueza tem que ser sempre do branco”?
O filme traz a universalidade de ações e reações do próprio ciclo da vida. Sim, é inevitável não referenciarmos “O Poderoso Chefão”, de Francis Ford Coppola, também inspirado no livro de mesmo nome do autor Mario Puzo, e não compararmos Leo DiCaprio a Marlon Brando, especialmente pelo “toque” da boca. Só que aqui com mais “malandragem sedutora”. Um galanteador, que usa sua beleza-embalagem para o golpe final. “Você tem uma cor de pele bonita”, diz à “pretendente” esposa indígena. Uma das mensagens do filme é que as pessoas esquecem e não dão a mínima ao outro. Cada um só vive sua individualidade. Esse egoísmo é o que diferencia os indígenas, povo acolhedor, empático e solidário, dos brancos, “urubus atrás de carniça”, que fazem tudo para conseguir o que querem, doa a quem doer. É muito estranho pensar também que hoje este tema ainda seja uma pauta tão latente nas preocupações de nossa sociedade.
Como disse, o filme “Assassinos da Lua das Flores” parte da “frustração” de uma personagem em dar o golpe até se tornar um efeito cascata de brigas e assassinatos, em que só o mais forte sobrevive em uma terra sem lei que muito lembra o tempo faroeste das diligências.