As Muitas Mortes de Antônio Parreiras
E no início, a morte
Por Vitor Velloso
Assistido presencialmente na Mostra de Tiradentes 2025
Fugindo por completo das biografias padronizadas pelo grande mercado cinematográfico, brasileiro e internacional, “As Muitas Mortes de Antônio Parreiras”, de Lucas Parente, é um projeto que deveria servir de referência para outros cineastas que querem contar a história de um personagem específico. O novo longa de Parente não se debruça sobre a vida do artista de Niterói, tampouco tem interesse em debater os detalhes que o transformaram em referência. O interesse aqui é utilizar a arte produzida por Parreiras para criar uma obra tão iconoclasta que parece deformar qualquer informação direta e objetiva sobre o pintor. E isso é fascinante.
Em primeiro lugar, o diretor está mais inclinado a fazer um bom filme do que a trabalhar recortes históricos e acontecimentos, o que é tão raro no cinema “biográfico” que chama atenção. Em segundo, o projeto mescla sua contextualização dramatizada e encenada com o apreço por imagens, sejam elas quadros ou filmagens, ou seja, a verve artística se sobressai a qualquer informação a ser extraída. E, por fim, traça um retrato tão ambíguo da figura e das características de Parreiras que é capaz de oferecer ao público tantos fins possíveis para o artista que toda sua trajetória se mantém em constante suspensão, sempre com caráter crítico e fabular, anunciando uma fatalidade e seguindo adiante. O curioso é que o anúncio de cada morte oferece alguma pista desse personagem que, aos poucos, vai surgindo para o espectador nunca como herói, nem como vilão, apenas… Antônio Parreiras.
Daí a completa recusa por uma representação básica e contínua, pois “As Muitas Mortes de Antônio Parreiras” se distancia da realidade a cada nova sequência, criando uma manutenção de estranhamentos, reformulações estéticas e a consciência de que a realidade que verdadeiramente interessa são as pinturas. Não por acaso, sua obra serve como uma apresentação de questões expostas no filme, desde a forma em si até os rumos do longa e sua estrutura de progressão. Aliás, é justamente o confronto direto entre a arte de Parreiras e a arte de Parente que transforma o projeto em algo tão distinto da produção cinematográfica contemporânea, pois não faz ode ao personagem; pelo contrário, coloca tudo em xeque a todo momento. Por outro lado, essa característica dialética entre a representação — o filme — e a representação da representação — as pinturas e o pintor a partir do filme — instiga o público a tentar decifrar essa complexa gama de particularidades que vai se construindo ao longo da projeção.
Assim, com a produção se desgarrando de qualquer obrigação com Parreiras e do compromisso didático, a sensação é de liberdade para transitar entre diferentes formas e propostas. Entretanto, há um preço para esse jogo e troca de formas, linguagens e imagens: o projeto se torna particularmente restritivo para algumas pessoas. Devo admitir que me permiti contemplar a obra em um fluxo ininterrupto, mas pude observar algumas desistências ao longo da sessão — não muitas — e algumas pessoas divagando ou mexendo no celular, em número um pouco maior. Ou seja, uma parcela do público procura mais biografias e menos a criação a partir de um personagem ou figura, como propõe Parente.
Além de sua abordagem formal, “As Muitas Mortes de Antônio Parreiras” também se destaca por uma reflexão mais ampla sobre a própria natureza do fazer artístico e a maneira como a arte dialoga com seu tempo. O filme sugere que a obra de um artista não se encerra em sua biografia ou mesmo em seus quadros, mas se desdobra continuamente em novas leituras e ressignificações. Nesse sentido, a escolha de fragmentar a figura de Parreiras em múltiplas mortes pode ser interpretada como uma metáfora para a constante reinvenção da arte e dos próprios artistas, que, ao longo da história, são revisitados, reinterpretados e, muitas vezes, reapropriados conforme as demandas culturais e ideológicas do presente, de forma tão dialética que o ponto de partida é a própria morte.
“As Muitas Mortes de Antônio Parreiras” é um filme que não se entrega às artimanhas mercadológicas nem rema contra elas, apenas se consolida enquanto um projeto à parte de compromissos históricos claros. Por mais que exponha as pinturas do “protagonista”, trabalha com a representação delas para criar uma nova representação — e isso não tem preço.