As Aventuras de uma Francesa
Descascando a laranja
Por João Lanari Bo
Festival de Berlim 2024
Nos filmes de Hong Sang-soo tudo começa de forma despretensiosa … mas depois as coisas se descascam como uma laranja (Martin Scorsese)
“As Aventuras de uma Francesa”, finalizado em 2024, é o terceiro filme do coreano Hong Sang-soo, prolífico realizador, com o ícone do cinema francês, Isabelle Huppert – ícone: pessoa ou coisa emblemática, no sentido figurado. Quais as razões dessa parceria, ou melhor, dessa afinidade? Isabelle, em entrevista recente ao Variety, indicou que tudo no meu relacionamento com Hong Sang-soo foi por acaso. Essa é apenas uma das coisas que tem sido tão maravilhosa sobre isso. Se o destino não passa de uma inegável sucessão de acasos, este tem sido um exemplo feliz de que as forças que regem o cosmos eventualmente põem-se de acordo e produzem, digamos, momentos agradáveis.
Hong Sang-soo é um fenômeno peculiar no circuito internacional de cinefilia. Seus filmes obviamente atingem um nicho de cinéfilos, um grupo que está longe de ser majoritário no público em geral, mas de modo algum é desprezível em termos de mercado. Ou seja, suas produções, realizadas com recursos mínimos, circulam – e são consumidas em nível global. E com Hong cada vez mais polivalente: em “As Aventuras de uma Francesa” produziu, dirigiu, editou e musicou – Isabelle, ainda:
Hong é um cineasta maravilhoso. É interessante para mim como ele agora está trabalhando com cada vez menos pessoas. Quando fizemos “A Visitante Francesa”, havia um monte de gente ao redor da câmera. Agora ele faz quase tudo, incluindo as luzes!
Seja lá o que Hong faz, o fato é que a atriz francesa está incrivelmente à vontade, transitando nas (poucas) situações como se estivesse realmente integrada naquele contexto específico, uma estrangeira ocidental inserida em um país de tradição confucionista – com paradigmas de comportamento distintos de uma mulher vinda do ambiente pós-moderno (se é que cabe a alusão) da França contemporânea. Esse núcleo básico de confronto dramático – Iris, a francesa, encaixa aulas de francês para sobreviver na Seul moderna e hiper capitalista – move a narrativa e proporciona três ou quatro situações, cômicas ou embaraçosas, em que a laranja é descascada.
Tudo é muito simples e direto à primeira vista – se a intenção é criar momentos de cotejo cultural, nada melhor do que equipar personagens para espaços de diálogo, no caso a própria interação linguística. Iris desenvolve um método de ensino particular e intuitivo, estimulando as alunas a descreveram suas aptidões musicais e transcrevendo-as em francês, para posterior aprendizado. Claro, o inglês é a língua franca que permite a interação, falado de forma hesitante e com vocabulário reduzido. O desenrolar da ação, os enquadramentos e a edição sugerem um clima descontraído e improvisado. Nada mais distante da verdade, segundo Isabelle:
Eu me envolvo todas as manhãs quando ele dá as falas, que são muito bem escritas. É muito, muito difícil porque tenho muitas falas para aprender em tão pouco tempo. Mas essa é outra coisa que eu gosto sobre sua produção cinematográfica. É a abordagem menos improvisada que você pode imaginar. Está tudo escrito. É muito preciso. Acredito que ele se inspira durante a noite.
Foram precisos 13 dias para rodar “As Aventuras de uma Francesa”. Um tempo tão curto insinua uma sensação de urgência, mas, de novo, foi o contrário, estava tudo planejado, roteirizado. Hong sempre leva tempo para fazer muitas, muitas tomadas, revelou a atriz francesa. Sobram espaços para gestos fora da caixa, naturalmente, mas tudo conforme a diretriz do realizador. É provável que uma pequena transgressão de Iris – ela pisca o olho de modo provocativo para o marido de uma futura aluna, quando esta se levanta para apanhar algo – também esteja no script. Ou não (a cena se resolve naturalmente).
Iris, mulher de certa idade (Isabelle Huppert tem 71 anos), desperta sentimentos em um jovem retraído e atencioso, proprietário do apartamento onde aluga um quarto. Uma situação edipiana transcontinental, a atração provoca inevitável ciúme da mãe do rapaz – nesse momento, paradoxalmente, caem as diferenças culturais: Édipo é universal, diria Freud. Mais uma vez, a situação se resolve, de uma forma simples e complexa ao mesmo tempo.
A performance de Isabelle Huppert é o traço fulgurante desse pequeno concerto de câmara. Na verdade, ninguém sabe exatamente o que ela está pensando – a única certeza, que emana do seu sorriso, é que ela parece despreocupada com que os outros pensam sobre ela.