Ary
Fantasmagoria de arquivo
Por Vitor Velloso
Festival do Rio 2025
Optando por uma abordagem descontraída e pouco ortodoxa, o novo filme de André Weller, “Ary”, propõe-se a expor parte da trajetória profissional e pessoal de Ary Barroso, um dos maiores compositores da história da música popular brasileira. Fugindo de uma abordagem documental clássica, o longa oferece aos espectadores uma reimaginação de passagens, com material de arquivo que inclui filmes, imagens de contextualização da época, esportes etc. A ideia central aqui não é seguir uma lógica biográfica padrão, mas procurar esse contexto em outras obras e bases de arquivo para representar o cenário por onde Ary Barroso viaja em suas falas, interpretadas por Lima Duarte.
Nessa perspectiva, “Ary”, em exibição na Première Brasil: Retratos do Festival do Rio 2025, se localiza em um inusitado campo de larga ambição junto a um certo lugar de conforto, compreendendo que a reencenação facilita o desenvolvimento da narrativa com uma base especulativa, um trânsito de imagens facilitado e uma cronologia favorável. Contudo, o esforço em entregar ao espectador uma vasta projeção da influência do compositor, das múltiplas viagens que sua obra realizou e de todo o trabalho multifacetado na história da cultura brasileira é impressionante — ainda que algumas dessas imagens surjam com certo tom de repetição ou forma quase cíclica, o que pode gerar uma estranha sensação ao longo da projeção. Além disso, algumas imagens contemporâneas parecem cumprir apenas uma espécie de tempo de tela, com rigor pouco efetivo, apresentadas, provavelmente, pela necessidade de dilatar a experiência de diferentes paisagens e contextos.
Nesse sentido, a sensação que fica é a de um projeto que enxuga os pormenores da narrativa por meio dessa capilarização, à medida que se expande além do que consegue dar conta, em uma proposta estrutural que permite assimilar a disseminação das composições através de um caráter quase fantasmagórico, em duas frentes diferentes: 1) pela interpretação de Lima Duarte, que se encontra em um plano distinto, assumindo o ponto de vista de uma suspensão do corpo físico, já compreendendo o fim de sua passagem; 2) pela forma como vemos que, apesar de Ary Barroso estar presente em tantos momentos e representações da cultura popular brasileira, ele não é protagonista desses desdobramentos, permanecendo em um lugar secundário. Assim, o próprio filme parece deslocar a biografia e a narrativa para o campo do “homem por trás dessas coisas”. Essa tomada de decisão estética e estrutural é ambígua, justamente porque “Ary”, teoricamente, procura preencher essa lacuna, mas acaba perpetuando esse débito com o compositor. Por outro lado, o tom cômico do filme parece retirar qualquer responsabilidade, ou “mágoa”, desse lugar, afirmando que a posição de Barroso é inequívoca e, portanto, onipresente durante todo o documentário.
Esse caráter fantasmagórico, presente na própria onipresença de Ary em todas as referências do filme, mesmo em imagens de contextualização — geralmente acompanhadas da interpretação de Lima Duarte, comentando sobre alguma viagem, aspecto do cotidiano ou memória —, mantém-se até o fim da projeção, quando a própria morte do compositor aparece como uma continuidade, permitindo que essas lembranças prossigam, novamente em tom cômico.
“Ary” consegue destaque por criar um irreverente retrato de um dos maiores nomes da música popular brasileira, mas também pela forma como articula a memória, essas performances e um intenso trabalho com material de arquivo, mesmo que com determinados problemas. O novo filme de André Weller não se submete ao engessamento pragmático de documentários biográficos que recorrem ao didatismo e à linearidade. Ainda que possua determinados “cacoetes” deste tipo formal. A interpretação de Lima Duarte, carregada de um certo peso simbólico, com esse gesto de imaterializar o próprio protagonista, dá movimento ao que poderia ser uma grande fotografia que guia o espectador por suas particularidades e contextos.
Embora arriscada, essa escolha evidencia a intenção de compreender a influência de Ary Barroso como uma espécie de espectro cultural que atravessa diferentes tempos, lugares e linguagens, sem se restringir a uma linha cronológica convencional. O uso de imagens de arquivo, mesmo quando se repete, reforça essa percepção de ubiquidade e acentua o caráter difuso de sua obra na cultura brasileira. Dessa forma, “Ary” constrói um território híbrido, no qual música, memória e encenação se entrelaçam para compor uma narrativa que, ainda que marcada por ambiguidades, reafirma a presença incontornável de Ary Barroso na formação da identidade nacional.