Vaga Carne: Em Carne Viva

Grace Passô Vaga Carne

Em Carne Viva

Por Roberta Mathias

“Vaga Carne” diz muito sobre Grace Passô, sobre sua potência de atuação e sobre sua segurança de conseguir se transmutar em voz. Porém, “Vaga Carne” diz também sobre as mulheres negras e um país que foi constituído através das dores dessas mulheres nos cafezais e engenhos de açúcar.

Às vezes “Vaga Carne” parece dor, às vezes vômito, às vezes grito. Quando vi o filme no Festival Ecrã, pensei que minha experiência seria afetada por ser a única negra da sala. Muito tem se falado sobre arte negra, arte negra de periferia e arte negra política. Para começar, política toda arte negra é (iria mais longe e diria que toda arte o é, mas estou falando de uma política bem específica aqui).

Ao colocarmos nossos corpos visíveis, falando e ao mostrarmos todas nossas possibilidades, estamos fazendo política. É desse tipo de política que pretendo discorrer. Ela não é recente. Entre 1940 e 1961 o Teatro Experimental do Negro já atuava como um polo cultural de extrema importância no país. Abdias Nascimento é um nome que não pode ser esquecido quando falamos em arte negra. Ruth de Souza, que participou do Teatro Experimental Negro, é outra. Por fim, cito Zózimo Bulbul, sabendo que poderia passar horas enumerando os artistas negros de relevância para construção narrativa do país. Ao se fazer extremamente ativo no cenário cinematográfico do país e influenciar gerações de cineastas negros, Bulbul ainda vive. Assim como Abdias. Assim como Ruth.

Não quero dizer com isso que Grace Passô é herdeira imediata desses movimentos. A artista, mineira, começou a ser mais observada no teatro a partir do momento em que se junta a grupos teatrais paulistanos. Mas, já em Minas, sua atuação era forte. Sua atuação e escrita são conjugadas ao trabalho de outros artistas negros que transitam por outros espaços e interesses, reforçando como a arte negra é, acima de tudo, múltipla.

Por que considerei essencial essa introdução? Em certa medida somos todos nós – negros – herdeiros do legado de Bulbul, de Abdias, de Ruth e de tantos outros. Temos como fundação (cultural, social e religiosa) honrar nossos mais velhos. Por mais que a atuação de Passô seja bem diferente (e é mesmo algo transcendental vê-la no palco) essa introdução é importante justamente para ressaltar que somos herdeiros, porém procuramos outros espaços e contextos em grupo ou individualmente – como artistas plurais que  somos.

Sobre “Vaga Carne” em si, a presença corporal e sonora que vem de Grace é extremamente importante para criar um clima no qual nos sentimos incomodados, desnorteados, fora da rota. A própria atrriz já admitiu em entrevista que essa é justamente a intenção. O texto foi primeiro encenado como teatro e isso ainda permanece de maneira residual em sua versão cinematográfica. Sendo uma pessoa que passou pela experiência de ver a obra no teatro e no cinema, digo: são diferentes.

Em minha percepção , a atriz conseguiu fazer bem a transição entre as duas plataformas artísticas. Precisamos, no entanto, entender “Vaga Carne” como algo que precisava ser dito de muitas maneiras. Por isso o livro (2018) publicado pela Cobogó, a peça e o filme. A impressão – e quase certeza – é de que a linguagem interfere na obra, mas não a enfraquece.

Passô é uma atriz extremamente refinada e já teve a oportunidade de mostrar suas múltiplas nuances no filmes da produtora Filmes de Plástico“No Coração do Mundo” e Temporada e em outra obra cinematográfica completamente diferente das da  produtora mineira. Em “Praça Paris,de Lucia Murat, a atuação da atriz também se destaca. Seu currículo possui indicações aos: Prêmio Shell, APCA – Grande Prêmio da Crítica, Prêmio Questão de Crítica, APTR, Cesgranrio, Prêmio Leda Maria Martins, Prêmio Bravo! Prime de Cultura, Festival do Rio, Festival de Brasília (Troféu Candango), Festival de Turim e Medalha da Inconfidência. Por “Vaga Carne, além de ser indicada ao “APCA – Grande Prêmio da Crítica na categoria melhor atriz, ganhou o Prêmio Leda Maria Martins pela atuação e pelo texto da peça.

“Vaga Carne” é sobre uma voz que possui um corpo, mas também sobre um corpo que não possui voz. Passô é sofisticada demais para fazer uma analogia direta tal qual fiz, mas esse é um dos caminhos pelos quais podemos ler o filme. A voz incorpora o corpo e vai, aos poucos, percebendo o que é estar dentro do corpo de uma mulher negra. Será que nossas artes, enquanto ativistas negros, precisam sempre ser simplórias e simplistas? Já nos ensinavam na década de 1960 Abdias e Bulbul que não.

Assim sendo, “Vaga Carne” é um filme experimental em todos seus sentidos. É uma transposição de linguagens (vindas do livro e do teatro), é um monólogo no qual a atriz interpreta uma voz e, por fim, é uma experiência que talvez seja impossível de se repetir. Para Grace e para o espectador. Se isso fica mais evidente nas performances de teatro, também no filme tenho a impressão de que o tipo de catarse jamais será o mesmo.

Temos muitas feridas para curar e Grace toca em muitas delas. Ora com força, ora com delicadeza.  Já havia visto Grace em cena na peça Preto, na qual contracena com Renata Sorrah , mas foi em “Vaga Carne” que consegui entender a capacidade de movimentação e força da atriz.

Grace foi capaz de interpretar uma voz com excelência. Isso não é para qualquer atriz.

O cenário remete muito ao palco de teatro tanto em relação às dimensões que nos são propostas, quanto à luz. Mas há algo essencial que diferencia o cinema do teatro. O enquadramento. Como ex-estudante de cinema diria que tanto atriz, quanto a equipe, conseguem se utilizar da mise-en-scène de maneira primorosa fazendo com que o espectador em momento algum se sinta cansado do corpo, da voz e das reflexões da voz de Passô, ou melhor, da voz que à incorporou.

“Vaga Carne” é um filme experimental, sim! Um filme sobre dor, corpo, identidade e possibilidades de um corpo negro de divagar, meditar. De ter tempo para o “ócio criativo”, mas ainda assim doloroso, pois doloroso sempre é.  Seria ao corpo negro permitida a possibilidade de divagação? Seria ao corpo negro permitida a possibilidade de criar uma obra eminentemente experimental?

Em minha percepção, Grace Passô é uma das melhores artistas de sua geração e vem mostrando que refinamento e argumentação política podem caminhar juntas em obras de arte negras.  Ao ver “Vaga Carne”, as vozes de outras duas artistas negras ecoaram em meus ouvidos, por isso gostaria de acabar esse texto compartilhando com vocês a poesia de Audre Lorde e Tatiana Nascimento, outra mineira, que julgo ser uma das escritoras mais incríveis de minha geração.

Como diria Tatiana, cujo poema  incluo abaixo, “nossa paz é barulhenta”- e o é em muitos sentidos. Como diria Audre Lorde, a poesia é o que percorre por nosso corpo e traz aparência ao inominável. Passô sabe muito bem transitar por entre esses dois mundos. No mais, quando nos for permitido, seremos sempre o que quisermos ser. E precisamos lutar para ocupar espaços, ouvidos e cabeças daqueles que ainda não presenciaram a potência de nossa arte.

Trailer da peça “Vaga Carne”

 

“o amor é uma tecnologia de guerra (cientistas subnotificam arma-biológica) indestrutível::a urgência dos nossos sonhos não espera o sono chegar: isso que a gente faz deita da chama revolução .sua palma, em linhas pretas, dança calor na minha pele(cores tortas, que somos).isso que aparenta um segurar-de-mãos ousado não é declaração de posse ou de mero par, casual que fosse, nem só demonstração de afeto pública carícia brusca contra essas tropas, brutas(eles quase que nos somem),é nossa arma de guerra, “mana minha”, minha amiga, desejada amante, y essa eles não vão adulterar desativar corromper deturpar denunciar na ONU caçar como terroristas capitalizar sabotar (re)acionar – essa eles não podem não querem y nem saberia macionar –essa é química hormona visceral astral usa fonte de energia renovável (“friccional”)é inesgotável reciclável tem garantia ancestral o nome dela anda meio banal,”amor” (se bem que a prática tamos reinventando…), mas ainda é nossa maior tecnologia (y a mais vasta) en contra y adelante a escassez dessa cruzada. e eu não tenho medo: cada peito como o nosso abriga a força de mil granadas y mesmo assim nem se forçadas paramos de lançar primaveras pelos ares(agourentos que eles cavam)eu acho que faz tempo que sonhamos acordadas, que nossa paz é barulhenta ,que da areia dos nossos olhos insones a noite fabrica suas pérolas (de amor, e de outras guerras): y elas brilham como nós.” Tatiana Nascimento

 

“Poetry is the way we help give name to the nameless so it can be thought. ”

“A poesia é a nossa forma de ajudar a dar nome ao inominável para que ele possa ser pensado.”

Audre Lorde em Sister Ousider

 

A fotografia utilizada na apresentação dessa crítica é de Leo Lara

 

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