Apenas o Sol
Extermínio, história e preservação
Por Vitor Velloso
Durante o Olhar de Cinema 2021
“Apenas o Sol”, de Arami Ullón, é uma obra que mostra parte do processo de homologação cultural ocorrido na América Latina, o subdesenvolvimento e o extermínio dos povos nativos. É uma obra que não está apenas preocupada em denunciar a formação histórica de uma ideologia que escanteia os indígenas, mas que reforça a luta dos povos por permanecerem vivos com sua cultura.
Parte dos registros aqui mostram as manifestações culturais como a própria identidade, seja no canto ou na gravação desses cantos para as gerações posteriores, procurando evitar a destruição dessa história. A memória é a grande aliada de uma produção que não se ampara nos materiais de arquivo, fixa sua construção a partir do hoje, da materialização dessa cultura e das divergências entre os próprios entrevistados. Quanto mais compreendemos a particularidade do caso, a violência branca se torna a grande chaga desses personagens, que além de denunciar a brutalidade física, expõe o avanço das evangelizações. “Apenas o Sol” não faz um julgamento de suas imagens, pelo contrário, mantém a objetiva próxima ao rosto de cada um, para que possamos ir além das palavras, mas ter o contato com a dor que permanece, incurável, histórica, real, brutal. Não por acaso, os espaços se tornam essa grande panorâmica que Ullón procura incluir, distanciando-se da representação consensual dos povos indígenas. Por vezes o tom prosaico toma conta, em outros momentos é a canção e as memórias que são projetadas.
Não existe exatamente um fetiche pela tentativa de um diagnóstico superficial que se encerra na denúncia rasteira e a própria linguagem se distancia dessa proposta, ao dar a palavra a quem deve narrar essa história. Porém, a tentativa de sintetizar essa destruição em planos diretos, seja na forma cadavérica de sua expressão, como nas imagens dos animais mortos, ou da destruição das terras indígenas, acabam caindo em uma correspondência imediata com a tradição latino-americana que objetifica a morte com uma distância quase estóica. É uma manifestação relativamente convencional de documentários que exploram a situação do sul global a partir de um olhar fatalista. Ainda assim, o filme não se mantém preso a essas representações e consegue caminhar por histórias que não romantizam o passado, incluindo depoimentos de pessoas que estão mais inclinadas aos evangelizadores, ou que já estiveram nesse lugar. Algo curioso aqui, é que uma das fixações de “Apenas o Sol” é justamente Sobode Chiqueño que grava a memória dos Ayoreo no Chaco paraguaio em sua fita cassete, contando histórias de como conseguiu o gravador e a importância de ações como essa. Esse ponto lembra um trecho de “Piripkura”, onde um dos cinegrafistas, que procura “ensinar” como funciona uma câmera de cinema, é surpreendido com a completa falta de interesse de um dos indígenas.
Por influência histórica do branco e o desespero em tentar manter sua cultura viva, Sobode Chiqueño não faz isso por um apreço ao aparato, essa aproximação com os dispositivos não é uma questão cultural. Está claro que é a particularidade de cada caso que permeia a própria mudança no povo, que no caso do filme de Ullón, esse avanço da cultura branca já é devastador.
“Apenas o Sol” é um retrato de como esse extermínio cultural é parte fundamental para compreendermos o estado do subdesenvolvimento na América Latina, onde essa homologação leva diretamente ao que vemos na tela: uma indígena trabalhando a terra com a camisa da Gucci. Essa influência direta, que alguns poderiam argumentar como simples globalização, são os reflexos da colonização, o estágio do imperialismo e a perpetuação de nossa dependência, levando ao extermínio dos povos nativos, suas línguas, suas culturas e a miséria de uma história tão rica. As investidas evangelistas seguem ocorrendo, com a única missão de destruição e homogeneização.