Antonio Candido, Anotações Finais
Irremediável
Por Vitor Velloso
Durante o Festival É Tudo Verdade 2024
Entre imagens de diários, anotações e registros, “Antonio Candido, Anotações Finais”, dirigido por Eduardo Escorel, constrói-se como uma memória viva do intelectual Antonio Candido, sem criar nenhum tipo de entrave no trânsito entre a celebração da obra e uma certa melancolia inevitável. Esse equilíbrio possui dois referenciais de peso: a montagem de Escorel, junto a Laís Lifschitz (de “No Intenso Agora“), e Matheus Nachtergaele criando um personagem que lê as anotações de Antonio Candido. E é possível dizer que o ator interpreta uma persona, pela forma quase monótona com que lê os textos, mas que belo brilhantismo de Matheus e pela cadência que a montagem consegue projetar, uma aura dramática se articula, com leves nuances ao longo do filme, transformando a experiência não em um testamento final, e sim em uma estrutura poética de memória.
Está claro que existe uma tensão de testamento, especialmente nos trechos onde Antonio debate a política do país, falando da Vale (do Rio Doce) e de Eduardo Cunha, com um profundo desprezo e preocupação pelo futuro do país. Não por acaso, o próprio intelectual se questiona sobre sua passagem na terra e se seu tempo já não se estendeu para além do devido. “Antonio Candido, Anotações Finais” se apresenta também como uma discussão atemporal, sem recorrer aos gatilhos imediatos de um material de arquivo de simples “disparo”, como registros contemporâneos de algum acontecimento, pelo contrário, sua vocação para memória é tão consciente que o próprio ir e vir entre o passado e o presente se apresenta como uma imagem estática, entre fotografias e breves filmagens de locais nos dias de hoje. É como uma dança entre fantasmas, com passado, presente e alguma imagem de futuro se sobrepondo à imaginação do espectador, mas sempre guiado pela narração e pela montagem, que nos apresenta registros familiares para compor essa dança.
Por essa razão, o tom de testamento, flertando com algo fúnebre, mas sem uma tipificação de ponto final, aparece tão bem representado por pinturas, registros contemporâneos e fotos do passado, pois é a forma de materializar uma frase que é lida por Matheus: Nós somos feitos do nosso passado”. Quando a câmera enquadra o local onde Antonio trabalhava, com a narração sobre sua memória com a falecida esposa Gilda, é como se estivéssemos sendo recebidos pelos fantasmagóricos anfitriões, cuja paisagem não são apenas as memórias do protagonista e suas anotações, mas um Brasil que é registrado, representado e debatido por ele. A própria noção progressiva desse diário reforça uma certa imagem de relógio, com um fim, que o espectador reconhece, sem que exista uma anunciação para tal. Assim, a velocidade dessa montagem traduz a sensação de uma falta de pressa, tanto pela maturidade dos textos de Antonio Candido, como pela sensibilidade de compreender que não há urgência de desenvolver esse retrato. Essa face de uma certa lentidão no desenvolvimento, possui pontos de marcação que transformam lentamente “Antonio Candido, Anotações Finais” em “Brasil, notas do subdesenvolvimento”, com um profundo amargor sobre a realidade brasileira, e especialmente, do que poderíamos ser. “A verdade, é que fracassamos” funciona como um disparo contra essa sensação de “progresso”. É interessante que o longa funcione tanto como ode à esperança, quanto desespero progressivo, onde assustadoramente os textos de Antonio parecem falar do Brasil contemporâneo, e claro que falam, as sensações são as mesmas e os problemas são os mesmos.
O documentário consegue progredir de forma tão coesa que entre “e isto é irremediável” e o debate, já no epílogo, sobre miséria, pobreza, liberdade x igualdade, se apresenta como um retrato desse grande fracasso político do país, que Antonio não apenas debatia, mas questionava se queria assistir, pois já não fazia mais parte do mesmo. Um país que consegue fazer um intelectual da envergadura de Antonio Candido sentir isso, realmente é uma terra do que “podia ser”.
“Antonio Candido, Anotações Finais” me lembrou um poema de Mário Quintana:
Envelhecer
Antes, todos os caminhos iam.
Agora todos os caminhos vêm.
A casa é acolhedora, os livros poucos.
E eu mesmo preparo o chá para os fantasmas.