Mostra Um Curta Por Dia 2025

Anora

O projeto russo de uma linda mulher

Por Fabricio Duque

Assistido presencialmente no Festival de Cannes 2024

Anora

Sean Baker é um cineasta de emoções naturalistas. Suas obras conduzem os espectadores por um coloquialismo realista de vida acontecendo. Suas histórias de sobreviventes em suas necessidades, propósitos e limites em que as ações, causas, reações e consequências de suas personagens são mais que possíveis, críveis e dotadas de únicas opções. Dessa forma, no universo de Baker, que nos cozinha a uma sinestesia narrativa, não há vilões, mocinhos, certos, errados e maniqueísmos. Cada um desses seres sobrevive como pode (pela catarse histérica, pela passionalidade primitiva, pela agressividade defensiva, e/ou pela observação contemplativa dos detalhes) dentro de seus meios sociais confortáveis, ainda que underground e criminais. Sean consegue traduzir esses mundos pelo olhar orgânico, livre e de humanização sensível, sem apelar ao sentimentalismo barato de despertar nossas comoções enquanto indivíduos viventes e passantes de uma sociedade desalinhada a certos seres à margem. Viver-se, se integrar e encontrar normalidade não foi “permitido” a todos os “moradores” dessa vida hostil e estranha que vivemos dia-a-dia. Em “Anora”, exibido aqui na mostra competitiva a Palma de Ouro do Festival de Cannes 2024, o realizador norteamericano não quer só corroborar suas escolhas e características narrativas, como especialmente quer transpassar geografias e “encontrar” a “comunidade russa”. 

“Anora”, como disse, traz em sua essência a atmosfera sensorial da explosão da agressividade, num instinto primitivo e numa catarse defensiva. O filme todo é uma bomba em movimento “marrento”, em atitudes de força para manter o poder. O ritmo conduzido por sua montagem, de naturalidade editada, em cortes rápidos, nos imerge no cotidiano intimista de uma sobrevivente “trabalhista” ao “achar” seu “bilhete premiado” e unir o útil ao agradável (prazer e boa aparência adolescente dele, Ivan, interpretado pelo ator Mark Eydelshteyn – que lembra muito Timothée Chalamet). O filme já começa na ação “diversão” no universo interno de uma boate de dança Striptease (mas a origem da palavra curiosamente quer definir alguém “que tem juízo”) até focar na personagem dançando no colo de um homem, entre área exclusiva, conversas entre elas sobre a preferências desses clientes e o pós-trabalho (e a ida para casa). O longa-metragem é um estudo cognitivo dessas existências “em modo de salvação”. Nossa protagonista, pela atriz americana Mikey Madison, confia pela “casa grande do riquinho bobão”, adentra na fantasia (e no sonho projetado) Disney do amor (mas com um que não ingênuo de “Bonequinha de Luxo” e  muito de “Uma Linda Mulher”), só que o que quer de verdade é a “vista boa do quarto” (se dar bem e se tornar uma “namorada quente exclusiva para a vida toda” – a “mulher troféu” por dinheiro: “perfeita, submissa”). 

“Anora” também é um filme estético. A fotografia faz com que sejamos abduzidos por uma luz metafísica, de instantes suspensos no tempo, por câmeras próximas e sóbrias, entre reflexos e raios incidentes do sol. Então, esse “novo casal shipado” se deixa viver a fantasia do possível e oportuna. Praia de Nova Iorque no frio, planos para Las Vegas, a impulsividade do casamento e uma vontade “no end” de “spring breakers” para sempre, mas lógico que ela, esperta e articulada, sabe como negociar com cautela e cuidado cada jogada ao lidar com “esse novo amor”. Sim, infelizmente esperamos a virada e a realidade da vida, que chega pela família dele, os “macacos do pai” e principalmente a mãe. Com essa entrada, “Anora” torna-se uma experiência visual densa, tensa e altamente violenta, de primitivismo animalesco. Ganha-se um tom enérgico, doido, urgente, insano e gritado, de troca de ofensas, de enfrentamento, de surto coletivo, sempre no limite da agressão física e/ou psicológica. Anora agora parte para a defesa da loucura ainda mais cruel. E indescritivelmente, o filme fica muito russo, entre momentos de sensatez e “descida do salto” de uma “geração que não respeita mais nada”. 

Mas Anora mesmo assim no meio desse caos todo “showtime” se conecta, é “atingida pelo cupido do amor real” e assim percebe que precisa baixar o tom (para ser a “dama sortuda”), mas sem deixar de ser “fodona”. “Anora” é uma potestade de alto teor de carga dramática. E a maestria de tudo isso acontecer está na interpretação irretocável, entregue e explosiva de Mikey Madison. Outro ponto essencial e positiva da obra em questão aqui é que até o final o roteiro não se rende a nenhum moralismo maniqueísta, ainda que nesta última parte tenha sim uma certa facilitação para nossa personagem principal. Mesmo assim, esse que é um mísero detalhe destoante, mantém-se a personalidade consciente de uma liberdade real, que está presente na vivência existencial de cada um de nós. Talvez isso tudo ajude a “bugar” certas mentes mais conservadores, que esperam a redenção valorada de Anora e um tradicional final feliz. É, definitivamente Sean Baker conhece bem as pessoas e sabe como ninguém traduzi-las à tela do cinema, talvez porque sua câmera as respeite com a dignidade de que no fundo não é certo e errado, tampouco verdade unilateral e absoluto. Sim, o diretor conclui seu “projeto russo” com sucesso. 

4 Nota do Crítico 5 1

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