Curta Paranagua 2024

Anatomia de uma Queda

Matou ou não matou, (não) eis a questão!

Por Fabricio Duque

Durante o Festival de Cannes 2023

Anatomia de uma Queda

Exibido na mostra competitiva a Palma de Ouro do Festival de Cannes 2023, o longa-metragem “Anatomia de Uma Queda”, realizado pela francesa Justine Triet (de “Sibyl”, filme que também concorreu em 2019 no mesmo festival), é, acima de tudo, um exercício de linguagem, por conduzir sua narrativa pelo pragmatismo cirúrgico no processo investigatório do caso criminal de uma família (a esposa – uma escritora alemã, o marido francês e o filho cego, de 11 anos) vivendo solitários nos Alpes, e, também, pela metáfora biológica, a começar pelo título do filme, evocada de cada detalhe (parte) apresentado durante as análises das possíveis provas dessa tragédia. Na medicina, a anatomia é o campo responsável por estudar a forma e a estrutura do organismo humano, e que se preocupa com o isolamento de estruturas. Aqui, toda a obra em questão busca a sistematização hipotética do entendimento (e da indefinição – visto que não se sabe se foi homícidio ou não, se foi ou não a cônjuge que matou), entre órgãos, tecidos e substâncias. Sim, “Anatomia de Uma Queda” é um filme de partes. Do antes (uma possível causa e a fatalidade em si), do durante (a investigação) e do final (o julgamento – o drama de tribunal – com seu devido veredito). 

Justine Triet não tem pressa em construir sua mise-en-scène. “Anatomia de Uma Queda” desenvolve-se pela atmosfera racional, cerebral e intelectual, de realismo psicanalítico, com dois talvez: o da psicose impulsiva versus a enrustida psicopatia premeditada. No julgamento, por exemplo, a protagonista suspeita, a esposa (vivida pela irretocável atriz Sandra Hüller – que está em outro filme, também na competição oficial aqui em Cannes, “Zona de Interesse”, age pela frieza, mas se desesperando às vezes por causa da língua não alemã. Sim, tudo é medido (e mensurado) por sutis reações. Se nesse antes, nós somos convidados a uma rotineira e intimista imersão da vida dessa família, entre afazeres domésticos e sociais, já no agora (o durante), o filme quer nos tornar membro do júri. Estamos ali para observar e formar uma opinião sobre o que realmente aconteceu. A cada evidência, bagunçamos ainda mais nossas certezas. É aí que mora a maestria desse cinema francês (com aura globalizada e extraterritorial): ao criar o discurso em prol do melhor argumento, gera-se o confronto de comportamentos entre esses dois países: de um lado, a prática da calma e aparência relax; do outro, o arrogante (e agressivo) espetáculo da razão. Sem esquecer do elemento norteador: o filho, a única “testemunha” é cego, parcialmente (informação que talvez a peça que faltava para completar o quebra-cabeças). 

“Anatomia de Uma Queda” também quer a imagem metafísica descompassada e com som atravessado, ora com o incômodo do silêncio, ora com a música aumentada, de câmera próxima e cortes rápidos. É a tradução naturalista de vida acontecendo, como numa entrevista a uma estudante de doutorado, que pergunta: “O que faz você explodir?”. Câmera continua a acompanhar o filho que leva o cachorro (que inclusive ganha um close) para passear. E então, acontece a tragédia e por conseguinte as suposições. Aí vem perícia técnica, perspectivas, análises balísticas, reconstituições, patologistas e perguntas metódicas. Ela é culpada? É teatro? Pronto, assim como no livro “Dom Casmurro”, de Machado de Assis, o veredito é o que menos importa. O foco está nos pormenores. Assim, nós enquanto “jurados” somos estimulados, de forma extremamente técnica e esmiuçada, quase de literalidade robótica (nos mínimos detalhes), pelos fatos, depoimentos subjetivos, “jogos”, ofensas destiladas e comentários já modulados pela convicção da culpa. Nesse durante, ainda um ano depois,  que precede o final geral, ainda temos dúvidas, porque há sedução, relatórios inconclusivos da necropsia, flashbacks felizes e de discussões, frieza versus passionalidade, segredos relevados com intimidação “sexista”. 

Justine Triet repete aqui sua predileção por filmes ambíguos com o “equilíbrio de poder dentro dos relacionamentos de casais”, que sugestionam e deixam porquês/respostas em aberto. “Gostei de criar uma personagem que não é muito legal. Eu a fiz dizer coisas que, na boca de um homem, seriam profundamente misóginas”, disse a diretora sobre sua criação (de “experimentação permanente” durante as filmagens) para a revista Número Art, 13a edição. Em “Sibyl”, por exemplo, ela falou na coletiva de Cannes que: “Eu preciso realmente desgastar meus atores. Adoro colocá-los nesse estado, mas é claro apenas quando a cena exige”. “Fiquei muito inspirado por um filme de Richard Fleischer de 1968, “The Boston Strangler”, uma obra que é ao mesmo tempo espontânea e estranha e alternada entre dois modos de filmagem, um clássico e outro violento.”, finaliza Justine sobre “Anatomia de Uma Queda”. 

“Anatomia de Uma Queda” é muito mais que um filme de tribunal. É uma experiência. De se permitir manipular pela trama. De jogar com o filme. De entrar em contradição com nossas certezas mais absolutas. De realmente fazer parte da dissecação da história e seus complexos componentes, seres humanos como indivíduos sociais, entre regras, leis e conflitos comportamentais. Matou ou não matou, (não) eis a questão!

5 Nota do Crítico 5 1

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