Anastácias
Opressões gerais em casos particulares
Por Vitor Velloso
Durante a Mostra CineBH 2022
Como uma espécie de síntese de uma série de problemas sociais brasileiros, “Anastácias”, de Tathiane Almeida, retrata não apenas a jornada de cinco mulheres que revisitam traumas e agressões do passado, como também expõe as entranhas de uma cultura marcada pela violência cotidiana de relacionamentos abusivos.
As formas de opressão, muitas vezes, banalizadas e normalizadas, ganham um contorno de regularidade no recorte proposto pelo documentário, que articula as sucessividades e semelhanças a partir das particularidades de cada personagem. É interessante como o longa é capaz de propor uma generalização dessas opressões, sem deixar de retratar as diferenças nas trajetórias de cada mulher, respeitando suas individualidades, mas permitindo que o espectador compreenda que a semelhança das violências sofridas não pode ser compreendida como um caso isolado. Assim, a montagem, assinada por João Marcelo Iglesias, utiliza recursos para lidar com essa concepção que aproxima e afasta cada recorte. Dentre criar ligações a partir de cada depoimento, há uma iniciativa de apresentar contrastes entre as mulheres, nas diferentes formas como cada uma mantém sua fé e religiosidade como um ponto de segurança, no amor próprio e na liberdade. Nestes momentos, onde os rituais e hábitos religiosos se cruzam em alguma medida, “Anastácias” mostra a realidade de uma sociedade que encontra segurança nas palavras sagradas, seja pela fé, pela redenção ou para enfrentar essa posição em que se encontram.
Essa montagem não funciona em tempo integral, já que existem transições que acabam soando arbitrárias, com saltos bruscos nos depoimentos, recortando algumas falas e cruzando entrevistas que abarcam a mesma forma de opressão, mas sem uma cadência que consiga sustentar algumas mudanças de direção. Quando o filme retorna para certas histórias, nós temos a sensação de interrupção, já que a personagem estava desenvolvendo uma descrição de um trauma pessoal do passado e logo em seguida o longa nos mostra outra mulher contando outra opressão, e voltamos ao trauma da primeira. Contudo, se em pequenos blocos, a montagem acaba perdendo a fluidez entre alguns depoimentos, o ritmo do longa então funciona bem, especialmente pela inserção de determinadas situações onde essas mulheres convergem, como nos churrascos e sambas que estão mais próximos do fim da projeção.
Aliás, essas cenas não apenas ilustram uma particular característica da sociedade brasileira, em uma face não-agressiva, como aliviam os sentimentos do espectador que está consumido pelos depoimentos profundamente violentos e angustiantes das protagonistas. Em determinados momentos o público no cinema se sentia sufocado pela realidade, tal como ela é, tanto pelas opressões masculinas vividas por cada uma, como pela agressão do Estado às mesmas. Quando ouvimos relatos de assassinatos da polícia ou relacionamentos abusivos, nós vemos que a intencionalidade da obra passa por essa ambição de resolver um problema dialético e metodológico de sua abordagem, uma concepção clássica do indivíduo versus sociedade, da particularidade versus generalização. “Anastácias” encontra equilíbrio nessa problemática ao estruturar o documentário de forma que não sobreponha essa questão, ainda que anuncie sua perspectiva já no título da obra.
E se todo esse trabalho funciona próximo da realidade concreta, em recortes específicos que permite o espectador enxergar uma representação da sociedade brasileira, o resultado é muito pela capacidade da direção de fotografia, assinada por Maria Navarro, de construir uma abordagem natural de suas imagens. Sem criar grandes intervenções no quadro e nos introduzir a este universo de tantas dores, sem que haja uma idealização dessas histórias. Se uma naturalização das locações e imagens, o filme nos permite enxergar o mundo sem filtros estéticos demais, que é, por exemplo, importante que em cenas como o churrasco, comum à todas, possua uma liberdade maior com a câmera, já que estamos diante de um momento quase idílico em meio ao sofrimento constante ao qual somos apresentados.
A presença sutil da trilha sonora, assinada por Lucas Cirillo, em breves momentos, reforça um sentimento transmitido pela cena, mas sem intervir nas entrevistas, nem provocar grandes sentimentos de maneira artificial. Não por acaso, em uma cena de forte impacto, como o desabafo de uma filha ao pai ou o “vlog” de estética que relata todos os momentos de um relacionamento abusivo, que possui uma função didática inquestionável, o público não é atravessado por músicas grandiosas que poderiam provocar distrações, como acontece em outros documentários do cinema contemporâneo.
“Anastácias” possui um poderoso poder de síntese, uma capacidade didática importante e a denúncia de uma realidade drástica que está nas entranhas da sociedade brasileira. É capaz de explicitar as trajetórias de suas protagonistas sem idealizar nenhuma dessas relações no recorte cinematográfico, além de conseguir emocionar seu público na voz dessas mulheres que sofreram e sofrem com uma cultura machista, misógina e repressora que retira a plena liberdade e direitos das mulheres brasileiras. Quando vemos todas juntas, no mesmo quadro, reconhecendo as diferentes trajetórias, somos capazes de compreender que entre as distinções de cada história, reside uma questão crônica na sociedade brasileira, onde nenhum caso é isolado.