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Alva

Do Conformismo à Auto-Anarquia

Por Jorge Cruz

Mostra de São Paulo 2019

Alva

A grande cena de “Alva” acontece no início do segundo ato e é quase uma repetição da sequência inicial. Nela, Henrique (Henrique Bonacho) se mostra farto da rotina de colocar comida para o seu cão pela manhã e não precisa dizer uma palavra para te provar isso. O português Ico Costa, após realizar quatro curtas ao longo da década, lança seu primeiro longa-metragem, tanto na função de diretor quanto de roteirista. Obteve êxito ao inscrever essa produção no Festival de Roterdã e agora os brasileiros têm a oportunidade de se aproximar da obra na Mostra São Paulo de Cinema de 2019, inserida na competição de novos diretores. O roteiro não precisa de motivações ou intenções representativas para passar sua mensagem. Diz muito sobre o protagonista a partir do panorama de sua rotina, mas as informações passadas não se revelam imperiosas para um acolhimento positivo do público.

A incomum co-produção Portugal, Argentina e França se justifica na figura do próprio Ico Costa. O português de 36 anos estudou na Escola Nacional de Cinema de Portugal, na Universidad del Cine na Argentina e em Le Fresnoy no norte da França. Todo esse manancial de referências parece ter sido o embrião de um cineasta cosmopolita e inserido na visão crítica pós-moderna de uma sociedade do cansaço – mesmo que em “Alva” não haja espaço para aprofundar tanto essas questões, dada sua contemplatividade e afastamento do personagem principal das interações sociais.

O ato inicial, aquele que não leva tão a fundo o experimentalismo narrativo, traça o perfil de Henrique como um homem que vive em função dos bezerros de seu sítio. As imagens de sua casa denotam ser ele um acumulador, com mesas e mobília entulhadas de objetos, bastante incoerentes com a simplicidade de sua vida. Na parede um pôster do Benfica campeão nacional de futebol português confirma que o tempo para o protagonista não é o mesmo de grande parte das pessoas, que desenvolveram certa obsessão pelo imediatismo. Isso porque o título ali comemorado é do ano de 2015 e o Benfica voltou a levantar a taça em 2016, 2017 e 2019.

Há um desapego afetivo por aquela residência que pode ser creditada ao isolamento forçado daquele homem. Longe da mulher e das filhas, Henrique parece um morto-vivo até dentro de sua própria bolha. Nessa parte introdutória, “Alva” já se constrói quase totalmente sem diálogos, nos deixando a sós com o protagonista e sua solidão andante. O encerramento do ato se dará com o personagem cometendo um grave crime, momento em que a obra pensada por Costa ganha forma a partir de uma narrativa elíptica. Há um toque naturalista na maneira como Bonacho representa a melancolia causada pelo desapontamento com uma rotina sem muita perspectiva de alteração – a não ser a dificuldade um pouco maior quando amanhece chovendo no sítio. É coerente que esse homem tome uma atitude extrema como desculpa para se movimentar, de certa forma.

Desde então a experiência de assistir a esse longa-metragem é a de servir de parceiro de Henrique. Não há abdicação total da narrativa, eis que a relação de causa e efeito não se esvai no desenvolvimento da trama. Porém, o roteiro transforma o que seria apenas uma premissa (criminoso fugindo para não ser pego pelo ato que cometeu) no filme em si. Não dá para deixar passar a semelhança com o clássico absoluto de Abbas Kiarostami, “Gosto de Cereja”. Porém, a ideia do cineasta é nos transportar para o depois do fatídico dia de Badii às voltas com sua decisão de cometer suicídio. Henrique troca sua falta de ambição antes de tomar a atitude extremada por uma mudança total em sua vida baseada no mero instinto de sobrevivência. Vale observar que não há planejamento nessa fuga que ocupa quase todo o tempo de “Alva”. A câmera do diretor contribui para que se sustente essa sensação de improviso, dada a ausência de unidade acerca da iluminação ou posicionamentos. Até mesmo a qualidade e os filtros das imagens não se pauta pela regularidade, eis que o protagonista opta por mergulhar em uma anarquia consigo mesmo.

O contato com a natureza, motivado pela distância segura da cidade, aproxima o longa-metragem de uma trilha, uma linguagem mais próxima do gênero documentário. Só que em “Alva” o expediente funciona bem, com aproveitamento eficiente do tempo. Mesmo longe de uma forma clássica de se contar uma história, a linearidade aliada a uma curiosidade – tanto do destino quanto das motivações do personagem – diminui o potencial de desistência da obra em virtude de ser considerada difícil.

Acaba sendo um voto de confiança a participação desse processo de fuga pelo crime cometido por Henrique. Há momentos em que na nossa cabeça implora por uma nova ação do nível do crime perpetrado. Quem, no entanto, supera esse ceticismo, é brindado com uma relação de cumplicidade que “Alva” nos insere. Quase como dar guarida a um desconhecido na rua, deixando o juízo de valor para ser feito depois que ele se afasta.

 

 

3 Nota do Crítico 5 1

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