Alpes
Você me conhece. Sou sua filha morta.
Por João Lanari Bo
Festival de Veneza 2011
“Alpes”, longa-metragem que o grego Yorgos Lanthimos realizou em 2011, é daqueles filmes que provoca um desconforto pensante no espectador, alguma coisa que irrita o fluxo de neurônios nas sinapses que informam nossas percepções. Irritação, deslocamentos, tudo parece basear-se numa premissa que clama o tempo todo pela adesão, sem fazer concessões. É uma agonia: mas também é um estímulo mental, somos induzidos – ou melhor, obrigados – a elaborar conceitualmente sobre cada cena, cada interpretação. Claro, o rechaço puro e simples também vale, a experiência pode ser uma pedreira audiovisual – se funcionar, pode ser um estranhamento hipnótico.
Estranheza ou estranhamento: é a experiência psicológica de um evento ou indivíduo que não é simplesmente misterioso, mas confuso ou assustador com um grau de familiaridade – esta é a definição básica de estranhamento para a psicologia. Para o velho Freud, o estranho é aquela categoria do assustador que remete ao que é conhecido, de velho, e há muito familiar. Yorgos Lanthimos parece endossar esses conceitos quando escreve roteiros e dirige seus filmes, como “Dente Canino”, de 2009, e mesmo nas produções hollywoodianas (“Pobres Criaturas”) que engatou após sucesso nos festivais. A sinopse de “Alpes”, conforme o press-release divulgado no Festival de Veneza, dizia o seguinte:
Uma enfermeira, um paramédico, uma ginasta e seu treinador formaram um serviço contratado. Eles substituem pessoas falecidas mediante agendamento, contratados por parentes, amigos ou colegas do falecido. A empresa se chama Alpes. O líder, o paramédico, chama-se Mont Blanc. Embora os membros dos Alpes operem sob um regime disciplinar exigido pelo seu líder, a enfermeira não o faz.
O núcleo da narrativa é, portanto, o luto, material dramático conhecido desde os tempos imemoriais. Como lidar com a perda de um ente querido, um pai, ou um cônjuge, ou uma filha, ou uma pessoa próxima, que desaparece do convívio imediato? É uma operação difícil e lenta, uma sutura que opera nas entranhas dos seres viventes, para a qual não há receitas prontas – só há angústia. Como traduzir tudo isso na direção dos atores, na escolha dos enquadramentos, no foco da lente? Os personagens agem com autômatos na medida em que desempenham seus papéis – essa é a premissa. A enfermeira, a principal dentre o grupo – pelo simples fato de dispor de maior minutagem no filme – assume essa alteridade enervante até o limite, quando se depara com seu próprio vazio enquanto personagem de uma obra de ficção.
Ser membro dos “Alpes” e pretender atuar como terapeuta requer um certo grau de desequilíbrio mental. A enfermeira vive essa tensão desde o início, quando atende uma jovem tenista no hospital e planeja substituí-la perante os pais. Mont Blanc, o líder, é ele mesmo paramédico, de olho em prováveis vítimas que possam vir a ser futuros clientes, agindo como se fosse um headhunter, especializado em encontrar pessoas perfeitas para demandas específicas. Pode ser cruel e impaciente na imposição de disciplinas comportamentais – reproduzindo o ímpeto disciplinar de quem dirige o filme, Yorgos Lanthimos – mas também está sempre disposto a jogos infantis e relaxantes. A mímica em que participa com a ginasta performando uma imitação do músico pop Prince é hilária, a despeito de ser a ginasta a mais instável do grupo (ela chega a tentar o suicídio, salva pelo gongo graças à enfermeira).
As cenas parecem se repetir, no momento em que a estratégia narrativa fica explícita. A enfermeira com o “pai” que gosta de dançar, a viúva cega que simula um flagra adúltero do marido, o amante que envia, furioso, a parceira de volta a Toronto – tudo é artificial, ritmado, como se fora um processo de luto industrializado. As coisas evoluem, apesar da repetição: os clientes reativam memórias, acabam mesmo tentando ampliar situações e emoções vividas, sobretudo através do sexo. Em nenhum momento algum deles é condenado a priori: há um método nessa loucura toda, diria a vã filosofia. Há mais coisas entre o céu e a terra, Horácio, do que sonha a nossa vã filosofia, disse Shakespeare.
O que interessa nesse filme sui generis, enfim, é medir o impacto de um conceito isolado – e não, como seria de esperar-se no mundo do espetáculo cinematográfico, de construir semelhanças ou diferenças a partir das interações entre personagens e suas repercussões. O objetivo, se é que cabe enquadrar algo como “objetivo” em “Alpes”, é desinflar expectativas e ilusões. Se funcionar, pode ser um estranhamento hipnótico.