Ainda Há Tempo
Nas regras do novo mundo
Por Fabricio Duque
O ator novaiorquino Viggo Mortensen, que agora estreia na direção e como roteirista, traz em sua essência um intrínseco querer: o de tentar pelas bordas mudar o rumo-comportamento da sociedade, como escolher o papel em “Capitão Fantástico” e ressignificar a simplicidade das pequenas coisas. No filme de Matt Ross, o personagem de Viggo questiona a ideia do que é ser pai. Já em “Ainda Há Tempo”, sua primeira obra como realizador, a mensagem agora parte da perspectiva de um filho que interpreta. John, que vive em Los Angeles com seu marido Eric e sua filha adotada. O longa-metragem quer mostrar o novo mundo contemporâneo, com suas permissões e possibilidades infinitas de existências. Que quebra os limites condicionados do que é ser a figura de um homem. Seu pai Willis (o ator Lance Henriksen), comporta-se como uma pessoa difícil de lidar e radicalmente conservadora. Homofóbico, arrogante, agressivo, bruto, machista, de rudeza orgânica e diz o que vem à cabeça, sem papas na língua, doe a quem doer. Ofenda a quem ofender. Um caubói “indomável” que se recusou a mudar as influências enraizadas. Ao apresentar sinais de demência, o Sr. Petersen perde-se em si mesmo, entre memórias acontecidas e imaginadas.
Pois é. É mais que sabido que toda e qualquer relação familiar, especialmente entre pai e filho, por si só, já causa conflitos e turbulências (esta a melhor metáfora do filme – visto que John é um piloto de avião de voos comerciais). Imagine conviver com diferenças e idiossincrasias dos outros. Talvez essa seja mesmo o propósito da vida: uma experiência de aceitação, respeito e perdão. Em uma das primeiras cenas de “Ainda Há Tempo”, uma elipse-digressão, o pai sussurra no ouvido do filho recém-nascido: “Desculpa trazer você a este mundo para morrer”. Essa resignação pessimista pode ser encarada como um vírus que causa “coração duro” em todos. Esse pai intransigente, em confusão mental (aludindo a “Meu Pai”, de Florian Zeller, com Anthony Hopkins), estimula questionamentos preconceituosos versus humanitários sobre a política governamental dos republicanos, intensificada pelo ex-presidente americano Donald Trump. Mas que aqui o embate é McCain e Obama.
“Ainda Há Tempo”, exibido na edição especial do Festival do Rio no Telecine, é uma crônica-odisseia. De um filho (nascido “diferente” e adulto demais para a idade) que durante a vida muda seu encantamento por acompanhar o processo. Um pai que deixa de ser herói (o da arma e do pato) para ser sintoma de um trauma-fardo. O tom narrativo deseja a tradução de um maniqueísta drama familiar. De um lado, o “velho Oeste” (com seus faroestes em preto-e-branco). Do outro, um colorido, quente e julgador novo mundo, intensificando neste cobranças patrulhadas de perfeição sobre a reeducação alimentar e contra o politicamente incorreto (confrontado pelos netos que não têm medo do discutir e das “convenções” de silêncio). Nós podemos até encontrar semelhanças temáticas com a série “Mad Men” (aqui de forma mais novelesca), um falling old-fashioned geracional em internalizar imediatamente as mudanças, como o cabelo azul do garoto, o piercing da garota e o filho “fadinha”. “Ainda Há Tempo” é um acerto de contas, potencializado, intensificado e exagerado. Uma terapia lente de aumento, que desencadeia ataques, gritos, catarses, defesas e seguras proteções do sentimento já confortável, e que se agrava com a chegada de mais entes familiares. A irmã (a atriz Laura Linney), por exemplo, mais conciliadora, aprendeu a sofrer calada e a argumentar pelo sentimental. O filme conduz o espectador por detalhes observacionais do que realmente significa ser um homem “macho” inteiramente “Viking” (palavra esta que agora sinaliza característica trumpista). Beijar a esposa no casamento e ficar com o batom nos lábios o faz mais “bicha”? O exame de próstata o torna um “apreciador da sodomia”?
“Falling” representa um potencial debut de Viggo, com explícita inclinação às obras do cineasta argentino Lisandro Alonso (o primeiro nome que o diretor agradece nos créditos finais). Almeja-se uma tentativa, mesmo que utópica e pessoal, de mudar o mundo. De o deixar mais leve e livre. De o salvar da idiotização fútil dos idiotas. Mas será que pais idosos ainda conseguem mudar seus posicionamentos e olhares? Será que a necessidade da aceitação imediata do agora não acelera o fim deles? Isso nos lembra outros filmes, como por exemplo, “Elza & Fred”, de Michael Radford. Talvez o mundo de hoje tenha desaprendido a esperar. A construir com base sólida. Em um mundo de cancelamentos e “Judas” líquidos, o ouvir se tornou um desafio. Pois é, quantas famílias não se desentenderam pelas ideias discordantes de bolsonaristas versus petistas. Há sempre o oito e oitenta. A nova radicalidade dos extremos. O silêncio, considerado cúmplice, e a anarquia libertadora. Em “Ainda Há Tempo” só faltou uma coisa: encontrar o meio termo do discurso e não seguir os limites impostos pelos populares.