Curta Paranagua 2024

Ainda Estou Aqui

A ordem dos souflés em uma família à deriva

Por Fabricio Duque

Festival de Veneza; Mostra de São Paulo 2024

Ainda Estou Aqui

Antes de tudo é preciso dizer que o cinema de Walter Salles é de cenas.  De capítulos. De núcleos conectados. Cada take filmado tem o propósito de traduzir, de forma artesanal, todo o contexto simbólico, por meio de uma narrativa de distanciamento proposital (pelo pragmatismo da encenação). Suas personagens dão vida ao roteiro começando na superfície genérica mais suspensa da realidade (percebida) da ficção  reconstituída mais teatralizada (repetindo os arquétipos macro-universais de internalizadas tradições sócio-familiares) até que aos poucos, em doses homeopáticas, vão mergulhando nas profundezas da emoção (em que se encontra o tom micro-intimista da dor-sofrimento). Por conta disso, não só pelo sucesso oscarizado de “Central do Brasil”, uma nova obra de Waltinho (como é carinhosamente chamado) gera ansiedade e uma crônica urgência imediatista de ter que assistir logo, até porque “Ainda Estou Aqui” já chega com prêmios. O filme venceu Melhor Roteiro no Festival de Veneza 2024, que é baseado no livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva (de “Feliz Ano Velho”) – um dos filhos daqui que romanceia a história de sua própria família.

“Ainda Estou Aqui” traz também outra curiosidade de Walter Salles: sua forma em conduzir o desenvolvimento de temas (que os escolhe para aprender sobre – neste caso, é amigo da família de Marcelo Rubens Paiva desde a adolescência) por um olhar de turista mais estrangeiro. Assim, toda essa história é contada por detalhes de conhecimento mais básico, como por exemplo citar referências culturais que já estão normalizadas no imaginário popular, como “Blow-Up – Depois Daquele Beijo” (1966), de Antonioni; “O Diário de Anne Frank”. É como se optasse por não complicar a simplicidade da mensagem, que aqui é direta, didática e por diálogos expositivos. Outra percepção sobre sua construção cênica é que o filme parece ter uma aura de narrativa de MPB, muito mais contida nas músicas “mais comportadas e resignadas” de Roberto Carlos e Erasmo Carlos que as mais revolucionárias de Caetano Veloso e Os Mutantes. “Ainda Estou Aqui”, ao transpassar o livro à tela, espelha também uma classe geracional dos anos setenta, mais intelectualizada, mais rica, com recursos para ter “empregados”, que mora em um casarão na zona sul do Rio de Janeiro, de frente para o mar. Sim, talvez isso seja o conhecimento e a consequência da perda da felicidade pela ditadura militar seja a parte-projeção do estudo de campo. Talvez isso explique todo esse distanciamento. 

No Festival de Veneza, a atriz Fernanda Torres (que encarna, em interpretação irretocável, a figura da mãe protagonista, que com a necessidade de conservar a imagem da ordem feliz da família, desdobra-se para não deixar apagar a chama da esperança e do sorriso sempre no rosto) disse que “Ainda Estou Aqui” é um filme pequeno. Sim, eu ainda complemento, e também um filme de gênero: de uma fase de nossa História ainda com feridas não cicatrizadas. Por conta disso, ao trazer a temática dessa época controlada pela violência contraditória daqueles que deveriam nos proteger, o longa-metragem escolhe a narrativa do medo, pela metafísica real, construindo a iminência do perigo, como uma presença observada (pela “mudança do tom” – e do barulho do helicóptero – no banho de mar após os exercícios de natação de uma mulher comum num lugar comum), como um caos anunciado, como o aviso de um tempo escuro antes da chuva. E tudo pela câmera próxima e trêmula (como se fosse personagem) e que participa na mise-en-scène de uma fotografia “maresia” saturada  ao brilho de sol no final de tarde. Era de se esperar também que “Ainda Estou Aqui” seguisse regras já tipificadas neste tipo de obra, fazendo com que o público fosse invadido por referências paralelas a outros filmes, como “O Mensageiro”, de Lucia Murat, e a “ajuda” de um guarda da prisão; e/ou proteger as crianças da verdade em “O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias”, de Cao Hamburger. 

“Ainda Estou Aqui”, como disse, traz essa atmosfera de novela, em diálogos mais ficcionais e sem emoção (e quase cem por cento de exposição – há pouco espaço e sensibilidade para o silêncio aqui), de edição mais rápida, para assim ambientar uma efervescência interrompida dos anos setenta. Até mesmo das memória de suas personagens, em uma reconstituição do super 8, com um filtro “Canva” de ser. Talvez isso tudo é assim por propósito: para proteger o próprio espectador (ou preparar seu “terreno” para vivenciar a verdade pós-fantasia – encenando a naturalidade para sentir a realidade). Até mesmo a batida mais ofensiva e violenta da polícia contra “comunistas e terroristas”. Essa mãe “Mediterrânea”, Eunice, uma governanta-dona de casa aristocrática, esposa mais submissa (ainda que antenada, articulada intelectualmente e de humor perspicaz – que “joga com o jogo”), casada com um ex-deputado, representa o lado alienante da sociedade. Seu marido e os maridos de suas amigas “partem para salvar os companheiros” ao som de Erasmo Carlos (“É preciso dar um jeito, meu amigo”). Ela está mais limitada ao que recebe e o que precisa resolver. A fase macrobiótica da filha e/ou a questão de ter ou não um cachorro ou o souflé, por exemplo. Não quer escutar que “Brasília tá pegando fogo”.

“Ainda Estou Aqui”, com roteiro de Murilo HauserHeitor Lorega, é um grande resumo de uma época, por detalhes, livros, músicas e comportamentos mais bairristas. O longa usa o artifício do footage (de colocar imagens reais da época projetadas na janela dos carros em movimento de agora – como se fazia nos filmes antigos). Quando essa parte pós-fantasia de família de comercial de margarina termina, a verdade aparece. Nós sentimos o terror por tortura psicológica. Nós sentimos o trauma. Nós sentimos o medo. Vemos robôs-soldados em protocolos de crueldade-sadismo. Mas a narrativa sempre sendo intercalada com momentos de um sentimentalismo maior, de uma maior manipulação da emoção. Sim, há esse elemento característico está em todos os filmes de Waltinho. Não é uma crítica, e sim uma constatação. Eu por exemplo não sou mais atingido por esse tipo de técnica. Ou o artifício de elipse temporal. 25 anos depois em 1996 e depois em 2014. São cenas que “arredondam” o resultado final. A certidão, o Alzheimer, o “lidar com o vazio”, a luta humanitária contra a “tática do desaparecimento”, perguntas de efeito dos jornalistas, respostas prontas e memórias oscilantes que ficam e ficam à deriva esperando o encerramento dos capítulos, o desfecho da novela e as últimas linhas do livro. “Ainda Estou Aqui” é também um filme homenagem. Um filme para lembrar das personagens reais (com fotos reais no final, inclusive). Um filme que nos obriga a “Sorrir!”!

3 Nota do Crítico 5 1

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