Aftersun
A tradução intimista de uma memória invisível
Por Fabricio Duque
Festival de Cannes 2022
A vida de um crítico de cinema não é fácil mesmo, porque a consequência esperada após assistir a um filme é a de traduzir imediatamente percepções em palavras. Mas há filmes que fogem dessa regra e pedem mais tempo para serem digeridos, como é o caso de “Aftersun”, que após ser exibido no Festival de Cannes (vencendo Melhor Filme da Semana dos Crítica), chegou a Mostra de Cinema de São Paulo 2022 lotando todas as sessões e gerando o burburinho de obra-prima. O que faz então com que esse longa-metragem já seja considerado tão especial e que necessite de mais imersão emocional? A construção de sua narrativa temporal, de ambiência invisível, por íntimos e pessoais instantes, analógicos e orgânicos. Aqui, quebra-se também a bolha do mainstream pela sensibilidade de uma poesia visual coloquial, não pretensiosa e que respeita a essência do próprio momento, o transformando em uma memória fabular. Ao importar uma revisitação do passado como reconstituição, “Aftersun” transmite a mais genuína existência humana de dois seres atravessados. Uma das maravilhas do cinema é essa: a de que nunca conseguiremos entendê-lo completamente, agindo assim como causa desse projeto de tudo que sentimos enquanto estivemos dentro dessas vidas intimistas e privadas.
“Aftersun” transcende o próprio conceito de cinema quando nos apresenta uma experiência sensitiva. A reviravolta de sua narrativa, em um misto de epifania, silêncio e sinestesia, está na absorção naturalista por uma terapia cognitiva entre distância e pertencimento. Sua câmera estética, com inserções de imagens caseiras, não quer invadir nada, apenas observar para criar sensações e relações, entre reflexos, elipses, luzes estroboscópicas, zoom sem músicas e sombras pós-sol. O longa-metragem, ao permitir que possamos vigiar, consegue captar a atmosfera de vida acontecendo (estendendo o momento, como por exemplo o barulho da obra) ao “dividir o mesmo céu”, ora em festas infantis, ora em conversas na piscina e mergulhos na praia. A história é simples: uma filha e um pai vivem instantes, entre fofas ofensas cúmplices (“cabeça gigante”) e ensinamentos de auto-proteção. Ela, dependente, o tem como ídolo, copiando seus movimentos, às vezes, e, ele a tem como tudo, ainda que tenha que se preocupar com os próprios problemas e em ter que aceitá-la como “mocinha”.
Quanto mais o longa-metragem se desenvolve, mais o referenciamos a “Um Lugar Qualquer”, filme este dirigido por Sofia Coppola que aborda a relação entre um pai e uma filha morando em um hotel; com “Projeto Flórida”, de Sean Baker. E é muito curioso também que a obra em questão aqui consegue acessar o documentário “Nada Sobre Meu Pai”, de Susanna Lira, sobre sua ausência paterna. Pois é, não dá mesmo para dividir o céu. “Aftersun”, uma filosófica metáfora poética, quer personificar o abstrato que acontece depois que o sol se põe a fim de construir uma crônica sobre amadurecimento (a tão universal perda da inocência) e desmistificação (a perfeição versus a humanização dos motivos do erro), com todo o típico humor inglês, tão característico da alma britânica. Os conflitos, as catarses limites, os deboches, narguilé, papos sexuais, flertes, tudo é sobre descobertas, permissões e percepções de certo ou errado. Ao manter o nível com papos adultos e existencialistas, nós espectadores embarcamos muito mais nas verdades ficcionais evocadas, especialmente pelo não didatismo dos símbolos, histerias, esperas e escolhas.
Uma das maestrias de “Aftersun” está no olhar humano de não julgamento. De não apelar a moralismos confortáveis para facilitar o já condicionado aceite do público. Quanto mais o filme se desenvolve, mais percebemos sua profundidade em discutir temas polêmicos e tabus de nossa sociedade. A filha então adentra nesse universo real demais, vendo tendências, bebedeiras, zoações, desesperos, limites e idiossincrasias de seu pai individualista, genuinamente pessimista e triste, mas que mantém a alegria para conservá-la na fantasia. “Aftersun” é tão naturalista que incomoda, porque não há alívios-fugas. Pois é, quanto mais se escreve sobre esta obra, mais se dá conta que deveríamos preservá-la. Que deveríamos deixá-la existir sem nenhuma análise e/ou definição. Que deveríamos apenas senti-la com nossas mais subjetivas opiniões. É, viu como é difícil ser um crítico de cinema? A sensação que se tem ao liberar palavras é que estamos perdendo a própria liberdade do filme. Estamos o pondo em uma caixa. Para concluir, “Aftersun”, estreia em longas-metragens da diretora Charlotte Wells, é muito mais que tudo isso abordado aqui, é uma experiência sensorial para ser degustada com o mesmo tempo de uma expositiva terapia psicanalítica, permitindo viver a escuridão e a luz sem brigar e afastar nenhuma delas.