Mostra Um Curta Por Dia 2025

A Vida Secreta de Meus Três Homens

Encenação e memória

Por Vitor Velloso

Assistido presencialmente na Mostra de Tiradentes 2025

A Vida Secreta de Meus Três Homens

A inventividade de Letícia Simões para construir “A Vida Secreta de Meus Três Homens” é formidável. Essa tentativa de fabular sobre acontecimentos, trabalhando com a encenação para tentar representar a memória de seus parentes (pai, avô e padrinho), sustenta a projeção do filme no Cine-Tenda, fisgando o público com sua ousadia e reflexões sobre a curiosidade, segredos e tentativas de solucionar traumas.

A estrutura é relativamente simples. O projeto se divide em três partes de duração similar, nas quais acompanhamos a história dos três homens por meio de narrações em off, uma grande quantidade de material de arquivo que ajuda a contextualizar essas histórias e as interpretações de Guga Patriota (avô, que fez parte do bando de Lampião), Giordano Castro (pai, que foi delator do SNI), Murilo Sampaio (padrinho, que escondeu sua homossexualidade) e Nash Laila (Letícia).

Contudo, o interessante é como a diretora encontra uma forma de elucubrar sobre o passado de seus parentes, tentando recriar situações e representar memórias, especialmente na maneira como se coloca diante das sequências, dialogando com seus personagens e consigo mesma. Nesse sentido, “A Vida Secreta de Meus Três Homens” ganha um status de filme-dispositivo à medida que Letícia articula o jogo cênico e as imagens de arquivo para realizar essa construção. Porém, é justamente no dispositivo que reside o caráter divisivo da obra, pois há uma tendência repetitiva nessa estrutura, que não apenas pode suspender o caráter dramático de algumas sequências, como também causar um incômodo pela falta de conexão entre as histórias. Ou melhor, pela ausência de uma construção que as interligue de forma mais consistente. A ideia é fascinante, as trajetórias são interessantes, e as atuações são excelentes, mas a sensação é de que falta uma unidade ou um elemento que solidifique essas perspectivas com mais rigor estético e formal. Por exemplo, a reta final, que procura explicar o atual contexto do Cangaço Novo, soa tão deslocada da proposta do filme e de tudo que foi apresentado anteriormente que é possível questionar a real intenção da cartela expositiva.

Por outro lado, o exercício imaginativo do espectador é amparado nas proposições das atuações e na formulação dessas narrativas, com questionamentos ambíguos, perguntas diretas e a autorreflexão da própria diretora sobre essas histórias, seu lugar nessas memórias representadas e a documentação contextualizante. Ou seja, nunca ficamos completamente à deriva nessa experiência, ainda que seja possível sentir falta de uma argamassa que preencha as lacunas. A própria dúvida sobre o que tudo isso representa para Letícia é mantida como uma lógica de esvaziamento ou saturação, deixando um questionamento em aberto.

De toda forma, “A Vida Secreta de Meus Três Homens” torna-se um experimento materialista e memorialista, baseado em deduções e suposições, quase sempre interrompidas pela incerteza, o que faz com que as histórias soem ainda mais interessantes para o espectador. Ainda que existam inconsistências na estrutura, como algumas negações feitas pela diretora, questionamentos ignorados e metodologias de pesquisa deixadas de lado, isso impede que o público possa refletir mais profundamente sobre os acontecimentos e as histórias. Além disso, o filme não oferece um caminho claro para expor a “verdadeira” história por trás dessas representações memoriais.

Assim, o filme parece caminhar de forma errática, comprometido com traumas e, ao mesmo tempo, ignorando questões importantes para sua própria estrutura. Essa dubiedade do projeto é capaz de suspender a experiência em determinados momentos da projeção, retirando o espectador da imersão e levantando discussões sobre as formas de representação da memória e algumas conveniências formais que fragilizam o longa.

“A Vida Secreta de Meus Três Homens” é tão fascinante quanto decepcionante, seja pela indisposição de vasculhar alguns recantos mais obscuros de certos segmentos, seja pela proposta de trabalhar com as deduções de forma quase lúdica. É curioso afirmar isso quando há momentos verdadeiramente diretos e objetivos no filme, como na cena em que Letícia tem a possibilidade de responder se diria algo para si mesma enquanto criança, e a diretora simplesmente responde “não”. Mas são justamente essas inconsistências que tornam o filme mais divisivo do que poderia ser. A montagem de Quentin de La Roche poderia resolver algumas dessas questões? Difícil dizer, mas há pontos que deixam um grande filme escapar entre os dedos, mantendo uma belíssima ideia um tanto frágil.

3 Nota do Crítico 5 1

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