A Verdade
Quando você tem bons atores...
Por João Lanari Bo
Festival de Veneza 2019
Em 2007, almocei com Juliette Binoche em um restaurante japonês em Paris. Em 2010, estávamos ambas em um evento oficial no Japão, onde me foi dada a tarefa de conduzir uma sessão de perguntas e respostas de três horas com ela. Nos encontramos novamente em um evento em Kyoto, e ela me perguntou por que não fazíamos um filme juntos (Hirokazu Kore-eda)
Com essas singelas palavras, o cineasta japonês Hirokazu Kore-eda indicou de modo sucinto porque resolveu sair do Japão e rodar um filme absolutamente francês, “A Verdade”, em 2019. Claro, trata-se de um realizador com prestígio consolidado, ganhou a Palma de Ouro de 2018 em Cannes com “Assunto de Família”, sem falar na boa recepção de várias de suas produções, como “Ninguém pode saber” (2004), “O Terceiro assassinato” (2017) e “Pais e Filhos” (2013). Kore-eda alcançou um status raro entre os autores de seu país, alguém que goza de distribuição global regular para seus filmes – talvez apenas Kyoshi Kurosawa desfrute de nível semelhante.
Não que não existam talentos no arquipélago (como os estudiosos muitas vezes se referem ao Japão), a expressão audiovisual é algo poderoso naquelas paragens. No século passado, nomes como Kenji Mizoguchi, Yasujiro Ozu, Akira Kurosawa, Kon Ichikawa, Masaki Kobayashi, Shohei Imamura, Mikio Naruse e Nagisa Oshima eram frequentes nas salas de cinema, sem mecionar a animação, com Miyazaki e outros. O mundo era outro, não existia internet, o chamado consumo eletrônico de imagens era muito inferior. Mas a tradição japonesa de valorização do pictórico e da narrativa a ele associada têm uma força especial. O crítico Donald Richie, que viveu a maior parte da vida em Tóquio, escreveu diversos livros sobre o assunto, entre eles um especialmente revelador, “Image Factory”, publicado em 2004, infelizmente não traduzido (ainda) no Brasil.
Para seu primeiro trabalho em língua não-japonesa, “A Verdade”, Kore-eda convocou nada menos nada mais do que Catherine Deneuve – uma das grandes divas do cinema francês – para viver o papel de Fabienne Dangeville, uma estrela egocêntrica. Uma personagem que é, a um só tempo, real e virtual – combinando a fama e as relações de Deneuve com trechos (fictícios, por certo…) de momentos egoístas e falhas afetivas que a estrela envelhecida impôs à sua família ao longo de uma longa carreira. Colocar Deneuve com Juliette Binoche, mãe e filha, enredadas em um histórico complexo e ressentido, foi uma aposta ousada e até certo ponto, arriscada. Como dirigir duas super atrizes, Deneuve e Binoche, nesse contexto inteiramente “francês”? A segurança da mise-en-scène, para usar uma expressão consagrada na língua do filme, é excepcional: praticamente não há nenhum vacilo do diretor, não apenas com a dupla principal, mas também com o entorno, da pequena (e bilíngue) Charlotte, filha de Lumir (Binoche), ao star americano Ethan Hawke, marido de Lumir e pai de Charlotte (sem falar francês…), passando por Manon Clavel e Ludivine Sagnier, conhecidas atrizes francesas – todos inteiramente à vontade em suas atuações. E também Alain Libolt, veterano ator, um dos melhores coadjuvantes do hexágono (como os franceses costumam referir-se ao seu país, pelo formato do mapa), que faz o secretário prestativo da diva, sobre quem ela diariamente despeja o mau humor.
Kore-eda-san, que ainda por cima escreveu o roteiro, não pensou duas vezes e adaptou seu tema recorrente, a família, a esse universo, digamos, neurótico: uma mãe sempre disposta a um comentário desagradável e desabonador, e uma filha abalada pelo que considera um abandono injustificável. A solução, hábil e sintonizada com um estratagema calculado, foi inserir um filme dentro do filme, onde Fabienne desempenha parte importante, embora não seja a protagonista. Em uma curiosa ficção científica, ela faz uma filha cuja mãe, atingida por doença incurável, viajou para o espaço onde conseguiria sobreviver. Logo, Fabienne, com 70 e poucos anos, envelhecida porque continuou no planeta Terra, contracena com uma personagem bem mais jovem e bonita, que retorna décadas depois, sua mãe!
Para a mãe fictícia, portanto, o tempo não passou… “A Verdade” elabora um simples e eficiente jogo de espelhos, onde o centro gravitacional é Fabienne (Deneuve), mãe e filha, simultaneamente. Dificilmente haveria solução mais adequada para espelhar esse conflito geracional, imerso no mundo do espetáculo, o cinema. Mãe e filha, atrizes e protagonistas, dentro e fora da tela.
Quando você tem bons atores, eles sabem o que eu quero, resumiu Kore-eda.