Mostra Um Curta Por Dia 2025

A Semente do Fruto Sagrado

As metáforas reais e possíveis do novo mundo

Por Fabricio Duque

Assistido presencialmente no Festival de Cannes 2024

A Semente do Fruto Sagrado

Mohammad Rasoulof não é o primeiro cineasta a ser perseguido pelo Governo iraniano. Suas ideias, suas percepções e seus posicionamentos sobre comportamentos político-sociais, assim como os pensamentos e quereres de mudança de milhares de artistas, incomodam toda a hegemonia sistémica das tradições religiosas. Mohammad Rasoulof também não “ajuda” seu próprio caso. Quando aborda, em um novo filme, de forma crítica, uma história sobre sua localidade, ainda que ficcional e intimista (do micro para exemplificar o todo do macro), questões de problemática de seu povo e do meio em que vive, o diretor atiça o sentimento de transformação existencial desses orgânicos humanos enquanto indivíduos, visto que apresenta novas possibilidades de ser e de agir, como por exemplo a ressignificação do conceito família (o tópico mais importante dos preceitos morais de sua terra natal) em outras formas de amar e de “respeitar” a divindade de Alá. Rasoulof questiona inclusive os preciosismos religiosos já enraizados: o uso do véu muçulmano hijab e a submissão da mulher ao homem. Mohammad oferece o livre arbítrio, que, para os mais extremistas, é uma afronta e um infame pecado à alma desses seres devotos e pautados pela invisibilidade celestial. 

Sim, toda essa metáfora crítica, pela representação fabular dessa sociedade espelhada ficcionalmente da realidade, é apresentada em seu mais recente e aguardado filme “A Semente do Fruto Sagrado”, que integra a seleção da mostra competitiva a Palma de Ouro. Mohammad Rasoulof também não é o primeiro realizador a criar burburinho com “iminência de perigo” no Festival de Cannes, e que “causou” apreensões se o referido governo tomaria alguma “decisão mais radical” por conta de sua suposta presença foragida. Sim, a pauta mais comentada é se o realizador conseguiria fugir do Irã para apresentar sua obra aqui. Sim, Rasoulof não só conseguiu sair do país que o persegue, como fez questão de estar em carne e osso nas sessões. E sim, após a primeira exibição, entendemos completamente o porquê disso tudo: nós tínhamos assistido a uma obra de arte. E já é unânime afirmar que o filme ganharia a Palma de Ouro. 

Em “A Semente do Fruto Sagrado”, Rasoulof constrói uma experiência político-existencial ao adentrar na normalidade intimista (mas não excluindo todas as movimentações e interferências de seu exterior – pelo contrário, esse fora situacional é o que conduz as necessidades do dentro) do cotidiano vivido por seu povo todos os dias, a hora devota à oração na mesquita, por exemplo. Esse coloquialismo de ações automatizadas (fazer a sobrancelha, cuidar do cabelo e cozinhar o arroz, por exemplo), por bate-papos mais banais e de aprofundamento despretensioso, uma das características do Cinema Iraniano, busca naturalizar nossa imersão pela identificação imediata, entre conversas “cúmplices” espirituosas (em tom de brincadeira adulta perspicaz e não sensíveis), sentimentos de autoproteção (e de medo a uma possível “pena de morte” por “ofender a Deus”), os suspiros cansados de impotência nas causas perdidas (o ter que seguir as ordens de “superiores”) e sistemicamente imutáveis (ainda que a rebeldia, os protestos – mostrado nos noticiários e nos stories das redes sociais – e a vontade de lutar permaneçam como mote definidor da vida), negociações, além da rotina do emprego, da casa (de servir o marido e “deixá-lo bonito”) e de suas dinâmicas consequentes e da “polícia”; e das contradições religiosas que nós não entendemos ainda, talvez nem os mais jovens iranianos, porque essa tradição está enraizada nos mais idosos. 

“A Semente do Fruto Sagrado” apresenta uma narrativa realista, mais visceral, como os fragmentos de bomba que ficam no rosto. Aqui, o filme quer a construção de uma distopia gradual do caos para assim embasar o discurso de grito (e de lamento catártico) ao fim de toda essa guerra, opressão, intimidações, mentiras veladas, “moralidades controversas”, interrogações e a “manipulação” pelos “jogos psicológicos”. A trama daqui mostra os efeitos das “ofensivas” policiais ao “tentar descobrir verdades”. Ninguém se salva. Todo mundo entra no radar de culpa. As filhas e a mãe. Uma “deslizada” é sinal de perseguição e “permissão à tortura”. Sim, tudo pela “ordem e paz dos bons costumes”, até um “piercing” é estar “longe do certo”. “Suas crenças são diferentes, mas Deus pensa igual”, ameaça-se. 

E aí, a “A Semente do Fruto Sagrado” entra em seu último ato. E a necessidade da sobrevivência pela resistência pulula a sinestesia por um tremor urgente, de impulso universal e radical. Aqui, não há família. Apenas inimigos em “lavagem cerebral” que “dormem ao lado”. Só a loucura-paranoia das polêmicas ideologias entranhadas. Nessa guerra, quem ganha? De um lado, um “novo mundo” à liberdade. Do outro, a representação dos valores antigos e não atualizados de um “mundo disfuncional”. Tudo o que aconteceu antes no longa-metragem é preparado para a cena final, à moda de “O Iluminado”, de Stanley Kubrick. “A Semente do Fruto Sagrado” também quer ser uma ideia-recado de que o momento do agora é das mulheres, que não fogem e correm mais de suas revoltas, medos e insatisfações. Sim, por conta disso tudo (e muito mais subliminar que só aparece quanto mais e mais pensamos nele) que o filme é uma precisa e irretocável obra-de-arte. Uma verdadeira Palma de Ouro.

5 Nota do Crítico 5 1

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