A Queda do Céu
Sobre a terra
Por Vitor Velloso
Festival do Rio 2024; Festival de Cannes 2024
Visando uma construção de um cenário concreto, onde a realidade dos povos nativos é apresentada como cotidiano, o documentário “A Queda do Céu”, dirigido por Gabriela Carneiro da Cunha e Eryk Rocha, é um projeto etnográfico que projeta as tradições, crenças, rituais, dores e toda a conexão com a natureza do povo Yanomami. Se por um lado, a lenta construção do filme dilata os tempos e a experiência do espectador com os planos de longa duração, por outro a montagem consegue criar transições entre uma suposta observação e a gradual intensidade do movimento dos corpos na tela, dos rituais e dos saberes que são transmitidos.
Assim, conforme avançamos na projeção, os momentos entrelaçados pela montagem, criam uma perspectiva sensorial de urgência, quase como em um ato de mimetismo com os discursos dos personagens na tela, acerca da queda do céu e dos perigos oferecidos historicamente pelos homens brancos, o povo da mercadoria. Contudo, as falas não refletem exclusivamente sobre os perigos contra o povo Yanomami, mas sobre o processo predatório contra a terra, parte do corpo e da alma dos nativos, como contra todo o planeta e a natureza. Nesse sentido, “A Queda do Céu” assume um recorte para desenvolver seu objeto de pesquisa e representação, a festa de Reahu realizada em homenagem ao grande xamã e sogro de Davi Kopenawa, e uma constante de imagens que estabelece o território, suas práticas e todo o senso de comunidade entre os personagens. Aliás, a descentralização dos discursos e dos depoimentos, faz do documentário um registro coletivo, que amplia constantemente a fronteira de seus objetivos e dos debates suscitados com sua forma de registro que evita o caráter burocrático de apresentação de lutas políticas, resistências e tradições culturais. Dessa forma, toda a problemática em torno da realidade concreta de um Brasil histórico e contemporâneo parece se unir nesse retrato realizado por Eryk Rocha e Gabriela Carneiro da Cunha, quase como refletindo sobre os tempos brasileiros, suas opressões, sua história de sangue e massacres culturais, sem que haja a necessidade de um discurso diretamente político, pois o registro antes de tudo é político, mesmo que enquanto cinema e sua natureza contextual.
A despeito do longo processo histórico, já estabelecido estruturalmente e institucionalmente em nossa sociedade, o extermínio cultural e a violência contra os povos nativos, é compreendido como uma realidade apocalíptica nos discursos e projetada pela estrutura formal e temporal de “A Queda do Céu”. Não por acaso, a estrutura do filme é cadenciada pela montagem, pelos detalhes de uma realidade em constante perigo, onde a silhueta do caos parece suspensa para a contemplação, mesmo que os fantasmas estejam à espreita fora de quadro.
Ainda que algumas passagens de “Arqueologia da Violência” sejam questionáveis, um trecho ajuda a refletir sobre as discussões levantadas durante o projeto. “Aceita-se que o etnocídio é a supressão das diferenças culturais julgadas inferiores e más; é a aplicação de um princípio de identificação, de um projeto de redução do outro ao mesmo (o índio amazônico suprimido como outro e reduzido ao mesmo como cidadão brasileiro)”. Em outras palavras, resulta na dissolução do múltiplo no Um.” (Clastres, 2015, p. 83). Em seguida o autor procura refletir o papel do Estado nesse processo histórico, sem partir para os fatalismos comuns em pensamentos que criam tipificações generalizantes.
Porém, é a partir do registro da cosmologia e das tradições Yanomami, que é possível questionar e refletir o papel dessa força política que está retratada em “A Queda do Céu”, como um campo de representação da realidade brasileira concreta, através de uma imagem que compreende as relações materiais na mesma medida que as relações intangíveis, entre corpo e terra, enquadrando o território como ponto de mediação entre todas essas vertentes, unidas pela imagem em si. Portanto, o tempo se dilata para que o projeto possa abarcar a complexidade das relações e do processo histórico, sem procurar uma síntese que sirva como ponto de corte, mas sim um recorte que parece se reproduzir pela história dos povos nativos.