A Mulher Rei
O imaginário que nunca está satisfeito
Por Ciro Araujo
Festival de Toronto 2022
Em um contexto de abertura de narrativas negras para uma Hollywood mais tolerante, “A Mulher Rei”, da diretora Gina Prince-Bythewood chega aos cinemas em busca de atrair esse imaginário norte-americano sobre a África. Se Ridley Scott realizou seu “Gladiador” ainda para encerrar o século XX, ele definiu perfeitamente essa visão que existe no mercado do épico cinematográfico. Muito pela necessidade da espetacularização que o povo estadounidense requisitou, a produção que estrela Viola Davis – e atua com muita vontade, ao menos – sentiu-se a naturalidade em centralizar a narrativa clássica em uma tribo Ahosi.
Não é de hoje que as Ahosi são idealizadas. Essa produção cultural de guerreiras femininas é, na verdade, uma obsessão, apenas maximizada justamente no que precisava ser a obra de mais de duas horas. Então Gina, cineasta responsável, decide aplicar apenas a tradição mais comum existente no cânone da Indústria: fala-se inglês e outra língua quando o personagem representa um extra-terrestre. É, portanto, de praxe. O que se assimila é parte da aparência, como na incorporação do figurino, danças, até gritos; a cultura se torna matéria líquida absorvida, simplificada como oportunismo para integrar a verossimilhança complementar. Pela internet, denominam com a hashtag – e termo – #girlpower, representante de uma onda mais recente do feminismo, o empoderamento mais explícito. O relativismo histórico aqui é presente, uma vez em que justifica-se a narrativa diante do histórico escravocrata nessa área cinzenta que alguns reinos africanos ficavam.
Seja o que for, “A Mulher Rei” continua possuindo o seu DNA original de gênero. A ação é cerne de sua própria existência, já que é dali que todo o interesse pulsante vem: de uma tensão inerente em busca de lutas literais que sirvam como representação da narrativa pré-disposta. Portanto, a ideia de um Reino do Daomé enfraquecido esperando ser defendido de outro opressor é velha, preenchida por coreografias de conflito talvez originais, mas muito treinadas por alguma agência lá dos states. “Os Sete Samurais” de Kurosawa é um exemplo clássico do cinema nesse sentido estrutural, ignorando sua própria qualidade e primor de linguagem.
Se o proposto por Gina Prince-Bythewood é de uma novidade na ação através desse imaginário, o que há mais? Há sim a presença de atores – em maioria, americanos – que em sua vasta maioria derrama o olhar através da tela, tornando-o um de seus maiores acertos. Viola Davis em seus momentos de diálogo entrega a mistura do esquecível para qualquer coisa, como se abrir a boca não fosse importante. Lashana Lynch realiza um papel que embora se renda ao clássico irônico contemporâneo para alcançar o carisma – leia nossa crítica sobre “Trem Bala” –, ainda apresenta fluidez através da atuação, ou ao menos alguma refrescância em um roteiro tão recheado de cenas que precisam se complementar. Em certos momentos, cenas em que procuram explicitar a grande preocupação existente através do sistemático comércio escravagista. Em outros, uma história menos relativizada, nua e crua. Que bizarro! O exagero fica evidente nessa espécie de hipocrisia.
E claro, o ímpeto amoroso do cinema clássico. O beijo e essa procura pelo close-up quando é fabricado um amor. Nas telas, representa a rendição e a miscigenação, declaração de paz e ponte para o europeizado; Leia-se no caso desenvolvido. De fato, essa análise é um tanto ácida diante da inocência proposta no longa-metragem, porém as entrelinhas construídas pelo perigo dessa pós-propaganda é maior. Se estão apresentando uma corrente de cinema negro, “A Mulher Rei” parece não se mostrar como um exemplo para o cânone. De fato, a grandiosidade de seu orçamento irá calhar para sua bilheteria, irá entreter por sua maior variedade que o cinema de heróis que é apenas uma sequência natural de convenções cinematográficas hollywoodianas. Mas o que sobra como catarse de uma obra assim é justamente de seu espaço, se é que irá ser lembrado, se uma produção dessas é emblemática, se possuirá alguma relevância. Talvez esteja tarde para uma comparação com “Pantera Negra” da Marvel, mas ali sua declaração foi imponente e direta, logo em um início. Deu-se como um dos melhores de heróis em anos. E o filme de Gina? Bem, esse está no campo do gênero ação. Não mais, nem menos, um pouco de perigo quando se permite um diálogo relativista, aquele limiar de não querer ser político enquanto ainda o sendo. Claro, ainda afeiçoando-se da coreografia de batalhas e uma imagem polida e bonita. Que coisa.