Mostra Um Curta Por Dia Marco mes 9

A Mesma Parte de um Homem

Medo e desejo

Por Vitor Velloso

Durante a Mostra de Tiradentes 2021

A Mesma Parte de um Homem

Aliando-se ao cinema de gênero a Mostra Aurora tende a ganhar uma personalidade distinta da convencional e “A Mesma Parte de um Homem” de Ana Johann surge como um front distinto das demais obras, como foi “Cabeça de Nêgo” no ano passado. O longa parte de uma premissa bastante corriqueira no cinema de confinamento: um estranho homem surge na vida de duas mulheres isoladas. Contudo, a proposta aqui é pouco usual.

O drama se desenvolve a partir do medo como uma engrenagem para essa volatilidade constante que a trama está submetida. A proposição caminha para o suspense, tateando os caminhos possíveis para que a resolução se submeta ao trato psicológico das personagens. O fim torna-se algo que não está na fórmula e o espectador deve acompanhar esse diário de anseios com o rigor e a paciência necessária. A montagem percorre a inquietação para encontrar os meandros dessa direção que se projeta a partir de uma cadencia de cigarro. Uma hora o dedo queima.

A relação entre os personagens é esse imbróglio sem retorno, uma espécie de contorno de desejos e medos, caminhando em comunhão. As ausências são preenchidas por essa manutenção do isolamento, a câmera está próxima de seus personagens, nunca o suficiente para revelar o oculto, mas longe demais para compreendermos. E essa consciência da linguagem, apesar de surgir de um projeto continuo da indústria, funciona bem por incorporar alguns clichês à essa tensão constante que é materializada na interpretações dos atores: Clarissa Kiste, Laís Cristina e Irandhir Santos. Temos medo dos personagens, de suas atitudes e intenções. Todos parecem à beira da desgraçada monumental. Irandhir incorpora um tipo pouco amigável mas de feição carismática, com uma violência inerte. Renata, vivida por Clarissa Kiste possui desejos que perpassam por seus maiores medos e ansiedades, repleta de arestas, cada uma parece conter o fim da história. Laís interpreta Luana, que possui um enigma mais complexo que parece e menos terno que podemos imaginar.

Esse casamento é a fórmula do erro em “A Mesma Parte de um Homem”, que não é uma obra original, muito menos inventiva, mas que consegue captar a atenção do espectador por um número incontáveis de situações inflamáveis. O desenho sonoro busca nos sons diegéticos as tonalidades dessa lenta manutenção de violência e medo. Tudo parece inócuo, sem vida, construído em mentiras. Aos poucos o espectador vai compreendendo que essa suposta ausência é a determinação da ação. Uma espécie de superação do medo como enfrentamento dos próprios desejos. E esse caminho “inverso” transforma o barato todo em um barril que, se explodir, o trabalho todo vai “pras cucuias”. A escolha desse traçado do psicológico como motor da realidade, pode não ser novo, mas funciona a partir da curiosidade em torno da sustentação de uma materialidade da inquietação.

Como uma espécie de jogo de objetificação, “A Mesma Parte de um Homem” desarticula o improvável e transforma o filme nesse tique-taque fatal. Quando o longa expõe uma resolução, o caos está instalado e o jogo de representações, se torna o escorpião que é iluminado no canto da sala, quando revelado e acuado, ele é perigoso. Há poucos momentos de respiro no longa, que estão acompanhados desse medo, como um encosto.

Algumas resoluções acabam abraçando o clichê, como o homem que vai até a casa, seguido da cena do cigarro, o tapa na cara por decretar a instituição família como propriedade (além da terra) etc. Isso resulta numa espécie de novela em algumas passagens, mas nada que entre em um platô de deslizes e comprometa a obra como um todo. Mas é possível enxergar as referências e através delas. É uma postura que cobrará do espectador um posicionamento moral diante da produção, pois internamente, a narrativa se despe de qualquer responsabilidade dessa mesma moral. Não trata-se de um inferno ou lugar que Deus abandonou, mas o medo e o “escondido” revelam algumas faces ambíguas.

O final da obra acaba soando uma conciliação que esse drama buscava consigo, pouco convincente, ainda que tente prolongar nossa despedida.

3 Nota do Crítico 5 1

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