A Menina e o Leão
A obrigação da crítica
Por Vitor Velloso
O retrato fálico de uma família, européia, branca que decide “salvar” leões na África do Sul e mudar seu estilo de vida completamente. Uma empregada negra, engraçadinha, “quase da família sabe”? Tia Anastácia. Com cinco minutos, entendemos do que se trata. A trama do branco salvador, claro, mais uma vez, mas agora com uma desculpa mais palatável ao grande público, um longa sobre a relação de uma criança com seu leão branco, um roteiro Disney, realizado fora do território da mesma.
Dirigido por Gilles de Maistre, “A Menina e o Leão” é a síntese do imperialismo cultural contemporâneo, disfarçado de boas intenções, somos massacrados por quase uma hora e quarenta. Os primeiros planos dão noção à qualidade da produção, temos a breve sensação de estarmos diante de uma web série adolescente, mal dirigida. Uma luz tenebrosa, que busca preencher tudo, gerando uma imagem lavada, diálogos terríveis e que não se justificam na dramatização que busca construir, uma atuação canhestra e uma colagem de takes, não uma montagem. Adjetivos infinitos não seriam capazes de traduzir a tragédia visual que se dá no ecrã. Mas tudo que está ruim, pode ficar pior. Uma antiga lenda é contada ao irmão caçula da protagonista, e ela será o nervo dramático que irá pautar toda a história. Com esta premissa, temos uma jornada com uma adolescente irritante e sem carisma, interpretada por Daniah De Villiers (que já me referi acima com adjetivos que não fazem jus à experiência) e um leão que, nascido no natal (nada mais eurocêntrico e branco que isso), deve retornar ao seu povo para que a salvação chegue aos mesmos.
Curiosamente em “A Menina e o Leão”, essa salvação deve ser realizada, claro, por um branco. Não à toa, ao sermos apresentados ao clímax, há uma clara exposição quanto a identidade do verdadeiro salvador, o homem branco, pai da menina, que tem sua redenção em compreender a importância dos animais e decide arriscar sua vida em “sacrifício” à jornada que sua filha buscou fazer a fim de perpetuar a lenda. Ora, se a lenda é real, que o leão chegue até lá com suas próprias patas, a intervenção branca para que o mito se concretize é apenas a intenção imperialista do projeto. A mais ofensiva intenção possível. Mas além do óbvio, é necessário ser didático, então a montagem realiza isso, após um membro da tribo dizer “Ó, ele voltou”, corta, vemos o homem branco defendendo o leão. O excesso da palavra que começa com “b”, cria uma problemática neste texto, já que “A Menina e o Leão” evita se referir a qualquer etnia, já que obviamente aquelas são “pessoas de bem”, então, utilizarei a letra B a fim de me referir aos que não devem ser nomeados.
Logo, os B sentem-se na necessidade de compactuar com a corrupção daquele país subdesenvolvido, por meios de sobrevivência… claro. Afinal, falta dinheiro para franceses e britânicos que vieram mostrar ao mundo à paz que o povo europeu pode semear em questões animais. E na África do Sul, não esqueçam. É impressionante a cara de pau do projeto, em precisar criar relações factuais em seu final, para que consiga passar panos quentes na produção, que além de “chinfrim” (pra utilizar um português de decência esplendorosa), consegue ser racista. Note que raramente existe a acusação direta deste tipo de coisas nos textos, mas neste caso é inevitável.
“A Menina e o Leão” não é só um fracasso monumental de produção, linguagem, atuação, design de produção e roteiro, como é ofensivo. Os B que realizaram o longa deveriam repensar suas posições no mundo e no mercado, pois criar uma propaganda européia que enalteça o caráter dos B, já é doentio por si só, localizar na África do Sul, é sádico, mas construir tudo isso em um filme completamente frágil, que não se sustenta por cinco minutos, é degradante. A necessidade mínima de realizar um projeto que consiga garantir, no mínimo, uma decência formal é algo que até os produtores Hollywoodianos conhecem, vide “Green Book”. Agora, Gilles de Maistre trouxe às telas um dos filmes mais tóxicos do ano e de brinde, um dos piores. E se adjetivos foram utilizados no texto, é porque ofensas piores são deselegantes.