A Gata Cinderela
Indecisões e Imprecisões
Por Jorge Cruz
Selecionado para o Festival de Veneza de 2017, o exercício de representações de cenários abandonados com trilhas incidentais seguida de um rock tradicional em italiano é o grande momento de “A Gata Cinderela“. Uma pena que ele venha nos créditos. A obra possui quatro profissionais creditados na direção e outros cinco se juntam a eles no roteiro, criando um texto a dezoito mãos (!?). Todo esse engarrafamento de talentos surge para recontar a clássica história da La Cenerentola, pelo olhar de Giambattista Basile, soldado e escritor do século XVI nascido em uma província napolitana chamada Giugliano in Campania. A personagem, das mais diferentes e controversas origens, teve sua representação definitiva na literatura pelos Irmãos Grimm (e no imaginário popular do século XX em diante pelas mãos de Walt Disney, sendo utilizada como mote de inúmeras obras, dentre elas produções do tipo “A Cinderela Pop“). Nessa animação, persegue-se as raízes italianas do conto, ambientando a produção no futuro breve e distópico da mesma Nápoles de Basile, que registrou em seus textos outras figuras clássicas como Rapunzel e A Bela Adormecida.
Na nova construção, Vittorio Basile (voz de Mariano Rigillo) é um visionário que cria um “polo de ciência e memória”, uma proposta de concentração de pessoas e ambientes onde o desenvolvimentismo possa se expressar. Só que, na verdade, o local é uma maneira de ampliar a segregação social de uma região conhecida por esse abismo classista. Enquanto uma parte das pessoas viveriam em meio a hologramas, a população à margem ficaria com o ônus do caos urbano potencializado. Esteticamente, a poluição e a neblina só não prejudica a visibilidade dos enormes elementos em neon, nos remetendo diretamente ao mundo de “Blade Runner, o Caçador de Androides” (1982). Todavia, os realizadores de “A Gata Cinderela” tencionam adicionar elementos mais regionalistas a essa proposta. Falham miseravelmente por não se esforçarem em entregar um produto coeso.
Até quase a metade do longa-metragem as maneiras de pontuar novos personagens, elementos visuais e propostas dentro da distopia são empilhadas em flagrante desnecessidade. Há uma intenção de construir uma insurgência da população do “lado de fora”, bem como a adição de autoridades representando outras nações, quando a passagem de tempo entre a morte de Vittorio e a chegada da idade adulta de sua filha Mia (voz de Mariacarla Norall). Há momentos em que “A Gata Cinderela” aposta em três (ou até mesmo quatro) frentes de desenvolvimento, em interações reprimidas por um ritmo que privilegia a exposição da animação. Com isso, a imersão resta prejudicada. Soma-se o fato de não definir de forma clara nenhum dos elementos primordiais para essa imersão, mesmo que futura, como um baque. A suposta protagonista Mia, por exemplo, possui alguns segundos em cena até a metade da obra.
Dessa forma, mesmo com uma linguagem adulta, o longa-metragem desfila suas propostas (de vilania, dilemas, motivações, dentre outras) de maneira que beira o infantil pela ausência de clareza. A já apontada tentativa de adicionar Nápoles como território decadente é atingida apenas em uma canção executada exatamente no meio do filme, como espécie de transição. A chegada (no caso retorno) de uma personagem que vê que nada mudou naquele recorte da cidade italiana – mesmo que isolada para parecer mais progressista – nos remete à visão estrangeira através da comédia do personagem de Clark Gable em “Começou em Nápoles” (1960). Um estereótipo territorial, que concede inúmeras possibilidades, sumariamente desperdiçadas.
Por sinal, os números musicais como linguagem vão ganhando força na medida em que se observa a rua sem saída na qual o roteiro se enfiou. Quando as relações estão prontas para serem exploradas, não há mais espaço para isso. Fica a impressão, quando a produção dá uma guinada tão abrupta quanto uma descida de montanha-russa, que poderíamos ter ali um excelente piloto de uma série animada – em que o episódio terminaria com o início dos dilemas. Até de maneira irônica, um holograma de Vittorio surge em determinado momento na beira da cama em que está deitada sua esposa e diz: “somos apenas a primeira parte da história, o melhor ainda está por vir”.
Restou ao filme contar (e mostrar, com representações visualmente bonitas) a partir de inúmeras canções, resolvendo suas tramas já expostas de maneira incipiente com um apanhado de montagens musicais. Todavia, em nenhum momento “A Gata Cinderela” deu a entender que assumiria essa linguagem, reforçando a impressão de que ali estamos testemunhando uma solução fácil para seu desenvolvimento falho.