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A Filha Perdida

Julgar, jamais: uma balança moral

Por Ciro Araujo

Festival de Veneza 2021

A Filha Perdida

O verão está no ar… Pelo menos no hemisfério sul, quando há um bom proveito desse calor já naturalizado em um bocado do que pode se chamar área de convivência. E claro, é um ótimo pano de fundo para começar a se desenvolver histórias. “A Filha Perdida”, longa-metragem de estreia da também atriz Maggie Gyllenhaal, traz toda a temperatura da estação com toques de amargor e identificação. É tudo uma questão de como se veem através de personagens totalmente equilibrados em um roteiro muito austero, que providencia uma reflexão sobre feminilidade e gravidez. 

Olivia Colman estrela suas cenas a partir de uma visitante aos cenários paradisíacos do mediterrâneo. Férias quase forçadas, longe do lugar que o sotaque britânico característico da atriz sempre a acompanha. Assim, a primeira pontada que o filme carrega já aparece. É curioso como a energia que, em sua maioria, um visitante anglófono traz é desconfortável para um vasto número de cenários no globo. São alienígenas, pessoas que possuem a ideia de que não fazem parte dali, daquela cena. É perfeito, já que a personagem de Olivia, nomeada originalmente do conto que a obra se adapta como Leda, traz consigo essa força vital. Assim, o crescimento de uma espécie de espinho acaba sendo bem notório desde o início da duração de “A Filha Perdida”. Um DNA, uma necessidade, um instinto para. A apresentação de personagens italianos que formam uma parede diante de outro universo vivido pela principal engenha algo além da troca cultural. É um gatilho, um dispositivo tão sagaz para implementar novas setpieces, isto é, cenas, que transitam em um espaço de flashback. E assim uma safada função narrativa é brilhantemente transitada, sem o apelo característico que a técnica possui. É um exercício de roteiro que Maggie parece compreender tão facilmente, talvez pela experiência que possui durante seus anos como atriz.  

Ainda sobre a personagem de Leda, que traz a impossibilidade de não ser comentada. Ela, o centro das atenções necessária para que a balança ética e moral forneça um equilíbrio, introduz uma irritação dentro da crescente exponencial que é o trauma da protagonista. A princípio, parece muito mais sobre uma “Karen”, termo contemporâneo usado para o que Olivia Colman já bem sabe fazer. Inclusive, remete-se bem levemente ao seu papel na comédia britânica “Fleabag”. Se quando a denominação de “exagerada” ou até mesmo “maluca” é inicial, torna-se proibida em seu continuar quando a obra em si de Gyllenhaal amolece o espectador. É um trabalho de encontrar explicações plausíveis para como as lesões em carne viva (não literalmente, óbvio) estão se expondo. A cineasta faz de tudo para jogar cartas de empatia e aqui definitivamente não é ruim.  Normalmente é o contrário. Objetos de cena são apresentados,  como a boneca roubada que age como um rosebud para três épocas distintas de Leda. Sua infância, seu período como mãe e pós reivindicação do ser materno. Existe um termo, apesar de não se encaixar no texto da obra de Maggie: “síndrome da mãe morta”. Parte da ideia de um desinteresse da mãe com sua filha. Aqui, ainda existe um trabalho no roteiro para humanizar a personagem. Curioso que escrever tal palavra (“humanizar”) traz consigo um conceito de que a mulher é apenas humana ao realizar o objetivo reprodutivo. Mas, ainda assim, existe um artifício escrito pela obra e que é entregue aqui. A mãe não possui desinteresse para a filha no longa da estreante. Existe amor e fardo, dois pontos que caminham juntos na maternidade.  

O clima de calor e ventos quentes que trazem consigo através das imagens de “A Filha Perdida” portanto são companheiros em uma jornada pequena de expor traumas. Se, diante da personagem tão complicada que Leda é, existir uma visão preta e branca sobre quem é ruim e quem não é, não traduz exatamente o que o longa-metragem se interessa por. A mãe que está cansada e quer continuar existindo por suas individualidades, que se vê como atraente por outro e justifica assim suas atitudes morais. Quem deve ser julgado, afinal? Por uma infidelidade? De fato, algo naturalmente enxergado com olhos tão arbitrários acaba como um trabalho árduo. Mas ainda assim existe o seu porquê em uma forma que Maggie Gyllenhaal encontra para dividir Olivia Colman e suas várias existências; Como mãe, como acadêmica, como amante, como amiga ou mentora.

4 Nota do Crítico 5 1

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