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A Extraordinária Vida de Ibelin

O Mundo de Ibelin

Por João Lanari Bo

Festival de Sundance 2024

A Extraordinária Vida de Ibelin

A Extraordinária Vida de Ibelin”, documentário de 2024 dirigido pelo norueguês Benjamin Ree, não é o que parece sugerir a sinopse:

Mats Steen, um gamer igualmente norueguês, morreu de uma doença muscular degenerativa aos 25 anos. Seus pais lamentaram o que pensavam ter sido uma vida solitária e isolada, quando começaram a receber mensagens de amigos on-line de todo o mundo.

Seria esse mais um daqueles filmes previsíveis que exploram as misérias humanas para despertar sentimentalismo cristão nas audiências, nesse mundo hostil que nos rodeia?

Não é o que o diretor se propôs. Jornalista da Reuters e free-lancer da BBC, Benjamin Ree traz um olhar acurado e original sobre um tema obviamente complexo, com precisão nos detalhes e – o que foi a decisão mais ousada e bem sucedida – uma feliz opção por recriar o ambiente virtual onde Mats Steen exercitou seus anseios e impasses existenciais, um mundo gerado a partir do game World of Warcraft, jogo eletrônico de RPG – sigla para Role-Playing Game, jogo de interpretação de papéis ou personagens.

Ibelin foi o avatar criado por Mats para circular nessa esfera, interagindo com os membros da guilda – grupo de jogadores que se unem com objetivos comuns – conhecida como Starlight. “A Extraordinária Vida de Ibelin” aposta nesse cruzamento entre real e virtual, produzindo uma linguagem documental que reproduz, em última análise, um parâmetro básico do modo existencial contemporâneo.

Às aventuras virtuais de Ibelin, o filme contrapõe depoimentos de pessoas reais, começando pelos familiares, e incluindo interlocutores que dialogavam com ele no ambiente virtual. Um avatar é uma projeção mental de corpos ideais dos jogadores, não apenas no aspecto físico – que para Mats, naturalmente, era central – mas também no psíquico, de carências e disfuncionalidades. Um lugar comum que se associa aos jogadores compulsivos é a solidão, o isolamento que esses seres se autoimpõem da famigerada realidade. Lisette Roovers, uma jovem e bela holandesa conhecida como Rumour na comunidade virtual, preenchia esses requisitos quando conheceu Ibelin e se apaixonou. Mikkel Neilsen, autista na Dinamarca, praticamente não saia de casa até que sua mãe o apresentou, virtualmente, a Ibelin. Ambos creditam ao avatar, quer dizer a Mats, a reconstrução de suas vidas.

Quando Mats faleceu, seu pai, que tinha a senha de acesso ao game, enviou mensagem à comunidade – e recebeu, para sua surpresa, uma torrente de respostas, muitas delas longas descrições de Ibelin e seu comportamento afetuoso, eventualmente agressivo, em relação aos parceiros do jogo. Segundo o pai, Mats teria dispendido – a despeito da crescente dificuldade física de qualquer movimento, inclusive cliques e teclados – cerca de 20 mil horas diante da tela. Com o auxílio do líder da guilda, conseguiu recuperar as transcrições desses contatos, ponto de partida para a animação que ilustra “A Extraordinária Vida de Ibelin”. Atores fazem a dublagem, escolhidos de acordo com o perfil dos personagens, sobretudo no caso do principal deles, Ibelin/Mats.

A experiência do jovem Mats, encerrado num cômodo hightech em Oslo e preso a uma cadeira de rodas altamente sofisticada, pode servir de ilustração ao postulado do filósofo alemão Martin Heidegger: a linguagem não é apenas uma ferramenta de comunicação, mas sim a “casa do ser”. Segundo a IA, Heidegger quis dizer com isso que tudo o que existe só “é” porque pode ser dito ou nomeado na linguagem. Ela é a condição de possibilidade para que os entes (as coisas que existem no mundo) apareçam e sejam compreendidos pelo Dasein (o ser-aí, o ser humano). Mats/Ibelin, impedido de constituir-se como ser humano pleno e usufruir da linguagem como atributo do ser, criou, com ajuda do game World of Warcraft, um mundo onde pôde expandir-se e participar ativamente, nos altos e baixos, de uma comunidade.

Mats Steen era portador de uma rara doença congênita transmitida pela mãe, distrofia muscular de Duchenne. Danos nas células musculares geram uma gradual deterioração no desenvolvimento do corpo, com quedas frequentes e dificuldade nas habilidades motoras. A doença pode levar a graves deficiências e redução da expectativa de vida, frequentemente devido à insuficiência cardíaca ou respiratória. Contudo, as notas que deixou, aliadas ao blog que escreveu nos últimos anos, revelaram uma vida muito mais plena do que seus familiares mais próximos imaginavam.

Mats ficou lúcido até o último momento, uma lucidez-limite que ostenta uma significação especial, enfim, nesse mundo hostil que nos rodeia.

4 Nota do Crítico 5 1

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