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A Cor da Romã

Nos versos da abstração poética

Por Pedro Sales

A Cor da Romã

Você tenta demais compreender o que está acontecendo, meu caro, e esse é um erro grave” (Excerto de “Orfeu”, 1950, de Jean Cocteau)

Um dos textos mais importantes para se entender o cinema enquanto arte é o ensaio “Contra a Interpretação“, de Susan Sontag. Para a autora, o espectador permanece muitas vezes preso em amarras narrativas, as quais impossibilitam a verdadeira fruição de uma obra, como ela exemplifica no trecho: “Ao reduzir a obra de arte ao seu conteúdo e então interpretar isso, doma-se a obra de arte”. Domar em certa medida é empobrecer, prática cada vez mais constante em um mundo de respostas fáceis e vídeos de “final explicado”. Imagina não poder contemplar obras como “O Espelho”, de Andrei Tarkovski, “2001: Uma Odisseia no Espaço“, de Kubrick ou “Persona“, de Bergman, por não ter entendido tudo. Às vezes, na verdade quase sempre, muitos filmes não são feitos para serem interpretados, apenas sentidos. Claro, é um exercício prazeroso tentar decifrar um longa, mas abraçá-lo em sua complexidade pode ser melhor a depender. No caso de “A Cor da Romã“, do armênio Sergei Parajanov, eu prefiro me abster da interpretação.

A princípio é até difícil se orientar narrativamente no longa. Toda informação advém exclusivamente do intertítulo inicial que anuncia se tratar da biografia do poeta-trovador Sayat Nova, da infância à morte. Após essa intervenção de Parajanov, o que se segue é o encadeamento hipnótico de imagens folclórico-religiosas, com pequenas interrupções para versos de Nova. O garoto que vive em meio aos monges auxilia nos afazeres, na recuperação de livros encharcados e no tingimento de roupas. A passagem para a juventude é demonstrada com frontalidade, como acontece em todo o filme, o pequeno passa o alaúde para o mais velho em um ato simbólico e poético. A obra, com esse estranhamento inicial, torna-se extremamente intrigante ao usar planos expressivos para construir a biografia do trovador. A faca e as romãs que mancham o linho, o motivo da concha nos seios ou ovelhas em um velório.

Essa carga simbólica obedece à abstração poética. Parajanov estabelece “A Cor da Romã” puramente pela potência das imagens. De certa forma, isso é extremamente condizente com a figura retratada e sua trajetória artística como trovador, é a representação visual da poesia. Na mesma linha, a influência musical e a onipresença de canções também se associam com Sayat Nova. Tais imagens atingem peso visual principalmente por dois fatores: as cores e o trabalho de câmera. O vermelho e o preto predominam nos figurinos, são “as cores do fogo”, ao mesmo tempo, o uso do dourado e do azul também chamam a atenção. A câmera, por outro lado, se afasta da laboriosa direção de arte e dos figurinos sofisticados que remetem ao século XVIII. Os planos são majoritariamente frontais e estáticos, como um teatro filmado. Além disso, existe uma influência pictórica muito tangível, como se cada plano fosse um quadro, ou melhor, uma iluminura.

A simplicidade da fotografia – ao menos em termos de movimentos e enquadramentos, uma vez que os planos contam com composições rigorosas e milimetricamente calculadas – também se reflete na montagem. Aqui, o elemento funciona quase à moda do Primeiro Cinema. O diretor propõe cortes que se assemelham a trucagens, aparecimentos e desaparecimentos, como Meliès fazia em seus filmes do início do século XX. Em razão dessa linguagem cinematográfica nada convencional ao ano de 1969, aliada à ausência narrativa (os diálogos são inexistentes), o filme é amplamente considerado uma obra experimental. Na realidade, se sobressai a simplicidade em detrimento do radicalismo estético. Existe, no entanto, uma cena em que o cineasta “modifica” a proporção da tela, o formato se restringe à silhueta do imponente Mosteiro de Halpate, em um simples e efetivo “truque”.

O simbolismo de “A Cor da Romã” é instigante, magnético e reafirma a riqueza cultural armênia. A verdadeira potência da obra se repousa em suas imagens, é portanto uma experiência visual bastante rica e única, em uma mise-en-scène simples e ao mesmo tempo enigmática – é quase impossível terminar a exibição sem ficar com os planos gravados na memória. É também uma abordagem arrojada de uma biografia. A abstração e a ausência de diálogos e narrativa, por exemplo, tornam o entendimento, ou interpretação, dos símbolos, uma tarefa árdua. Não me arrisco a enveredar por esse caminho, me atenho ao caráter impactante das imagens. Ainda assim, Parajanov consegue balizar a dicotomia do trovador Sayat Nova. Ele contrapõe a vivência entre o sacro (a infância no mosteiro e a velhice) e o profano (a juventude, o folclore, as musas). E para finalizar com uma curiosidade que comprova o impacto do longa: mesmo com o caráter “cult”, ele exerceu influência na cultura pop, como no clipe de Lady Gaga “911“, que emula a estética-poética do cineasta.

4 Nota do Crítico 5 1

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