3 Obás de Xangô
Território e suas diferentes faces
Por Vitor Velloso
Assistido durante o Festival do Rio 2024
O novo longa de Sérgio Machado, “3 Obás de Xangô” procura estabelecer para o espectador uma dimensão cultural, social e religiosa da amizade entre Jorge Amado, Dorival Caymmi e Carybé, trabalhando com suas influências na cultura brasileira e o “modo de estar no mundo” dos baianos. Por um lado, é interessante que a abordagem fuja um pouco da habitual centralização de suas produções culturais, tão debatidas e referenciadas ao longo dos anos, pois cria um retrato distinto das demais obras. Contudo, é estranho notar como na própria estrutura do filme, há uma predileção por Caymmi e Jorge, deslocando a figura de Carybé para um plano secundário ao longo da projeção. Esse deslocamento provoca um certo conflito em um longa que se propõe a debater as três figuras em dimensões espirituais, como guardiões de uma mediação entre terreiro e sociedade. Nesse sentido, “3 Obás de Xangô” vacila ao tentar conectar as três figuras uniformemente, pendendo de forma desigual, ainda que Carybé apareça como importante representação artística e cultural, com inúmeras obras aparecendo ao longo do filme, tanto através uma exposição direta, quanto pela presença em terreiros.
De toda forma, o maior mérito da obra é sua capacidade de articulação entre a história oral, especialmente nos trechos com Jorge Amado, sua facilidade em demonstrar os méritos estéticos e culturais da obra obra de seus personagens, na medida em que nos apresenta, de forma didática, essa função dos Obás em serem mediadores entre a sociedade e os terreiros. Não por acaso, várias sequências presentes no documentário são de falas de Jorge Amado nos terreiros, comentando histórias, particularidades comuns entre sua obra e sua fé, ou como seus personagens literários são reais e podem ser encontrados nas ruas da Bahia. Essas sequências criam uma belíssima possibilidade de compreender o embrião criativo dos artistas, quais suas referências materiais e sociais para suas produções, as possibilidades de reflexão etc. Sem dúvida, essa contribuição de “3 Obás de Xangô” é imensurável, pois oferece ferramentas múltiplas pro espectador enxergar a complexidade dessa representação do cotidiano, seja para um campo metafísico ou não.
Contudo, quanto mais a obra se esforça para angariar depoimentos que possam somar nessa experiência multifacetada dos artistas e os legados deixados, mais parece ter dificuldade em utilizar algumas falas coletadas, que parecem deslocadas na montagem ou que não agregam à construção da obra. Um exemplo disso são os trechos com Itamar Vieira Junior, que apesar de seu recente sucesso na literatura, especialmente com “Torto Arado”, não contribuem para o documentário, soando como uma tentativa de trazer um personagem contemporâneo importante para o cenário cultural brasileiro, mesmo que suas falas sejam deslocadas ou repetitivas dentro do contexto apresentado pela obra. E isso acontece com outras entrevistas ao longo da projeção, criando uma sensação de descontextualização e perda de foco.
Ainda assim, a experiência de assistir “3 Obás de Xangô” é agradável e o progresso construído através de Caymmi e Jorge Amado, criam uma sensação de proximidade com as duas lendas que é inegável, transformando a sessão em algo tão cativante quanto denso, mesmo que seu didatismo propicie o espectador a atravessar toda a projeção de forma orgânica. A montagem vacila na transição temática e contextual das entrevistas, mas não interrompe drasticamente o fluxo a ponto de retirar a imersão do público, apenas gera uma disritmia.
As formas que o documentário encontra, através da montagem e de seu material de arquivo, de ser conciso ao mesmo passo que expansivo, chama atenção e carisma de seus personagens fixam a atenção do espectador durante a curta duração da obra, convidando todos a revisitarem as obras dos artistas. Além disso, a estrutura de apresentação através da oralidade, reforça o caráter material cultural de uma prosa cotidiana que através do registro artístico da genialidade de Jorge, Caymmi e Carybé, torna-se peça fundamental para compreender o território baiano enquanto força única no país.