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24 City

O yin e o yang do documentário

Por João Lanari Bo

Festival de Cannes 2008

24 City

Nascido em 1970, na modesta cidade de Fenyang, província de Shanxi, Jia Zhangke foi e continua sendo testemunha ocular de um radical processo histórico: a emergência da China moderna, pós-revolução cultural de Mao Tse-Tung, fruto das reformas econômicas capitaneadas por Deng Xiaoping. “24 City”, um (falso) documentário que realizou em 2008, devassa o fim de uma fábrica estatal de jatos Mig, localizada no centro de Chengdu, a populosa capital da província de Sichuan: o local era conhecido, na curta e seca nomenclatura socialista, como “Fábrica 420”. O suposto pragmatismo que norteou os planejadores urbanos da era socialista, ao construir um imenso complexo estatal no centro de uma grande cidade como Chengdu, terminou abruptamente – foi atropelado, na aurora do século 21, por um empreendimento imobiliário típico dos novos tempos chineses (e capitalistas), que inclui shopping center, lazer, residências, tudo aquilo, enfim, que reza a cartilha da meteórica escalada chinesa da modernidade. É a China moderna que se impõe – a onda capitalista avança irresistivelmente e impacta nos comportamentos, nas expectativas e no desenho das cidades. O cinema de Jia se debruça sobre essas transformações.

Em 1990 viviam em cidades cerca de 26 % da população chinesa: em fins de 2014, esse percentual subiu para quase 55 %, ou seja, mais de 700 milhões de pessoas. Diante desses números, não é difícil imaginar a ansiedade latente na sociedade em relação à rapidez do processo de urbanização, com profundas mudanças sociais, econômicas e psicológicas. A vida de Jia Zhanke foi pautada por transições: penúria e retraimento nos tempos maoístas, opulência e desigualdade crescente no refluxo da maré socialista. O atual modelo chinês combina autoritarismo de partido único com abertura para o capital estrangeiro, sobretudo da diáspora chinesa, com forte presença de empresas estatais – e infinitas oportunidades para alpinistas sociais com bons contatos no governo, gerando uma espécie de capitalismo de estado, mais ou menos predatório. Jia Zhangke, um dos observadores privilegiados desse modelo, construiu uma linguagem cinematográfica que capta essa brecha histórica com maestria singular, sugerindo para o espectador, sobretudo o ocidental, a densidade de desejos e aflições, intensos e comoventes, que afeta os chineses. Tudo isso de forma despojada e direta, sem pirotecnias ou excessos melodramáticos.

Misturando depoimentos de antigos moradores do complexo da Fábrica 420 – documentário clássico – com atores e atrizes encenando textos como se fossem partícipes da história, “24 City” constrói a narrativa instalando uma sutil incerteza no espectador acerca do estatuto de verdade da imagem: afinal, os operários são verdadeiros ou ficcionais? Concorre para esse estranhamento a excepcional fotografia de Yu Lik-wai, fiel colaborador de Jia, cheia de tons escuros contrastados, sugerindo uma atmosfera hiper-realista. Joan Chen, famosa atriz e realizadora sino-americana (conhecida na China como Chen Chong), interpreta uma melancólica operária apelidada de “Pequena Flor”, que sempre se destacou pela beleza, mas nunca conseguiu casar. O apelido vem de um filme chinês de sucesso no início dos anos 80, onde a personagem “Pequena Flor” era interpretado pela própria Joan Chen, antes de sua partida para os Estados Unidos. Jia revela que “24 City” foi uma espécie de laboratório de mise-en-scène, conectada ao processo histórico de seu país:

Sempre tive vontade de filmar a vida dos operários, principalmente com a transição da economia planejada à economia de mercado nos anos 90, quando as fábricas foram fechadas e as pessoas mudaram de trabalho. Muitos operários perderam o emprego e, depois de terem ocupado uma posição central na sociedade, ficaram marginalizados…por quê? porque a vida deles estava estreitamente ligada à da fábrica. A educação deles, de seus filhos, os lazeres, a proteção social, a aposentadoria, as relações de vizinhança e de amizade, tudo era ligado à fábrica.

A dialética entre o real e o virtual aqui parece se instalar no próprio corpo das pessoas, operários reais e virtuais. O espaço da fábrica, um imenso volume arquitetônico rodeado por um aglomerado urbano gigantesco, está prestes a evaporar, ultrapassado pela força do capital especulativo. Entramos e saímos dos mesmos ambientes, muitos deles sugerindo uma precariedade à beira do colapso, dado os avanços implacáveis da especulação imobiliária na cidade. Assistimos não apenas a passagem do tempo e mudanças correlatas, mas também a trajetórias pessoais dos personagens, até mesmo dos figurinos – das túnicas estilo Mao às jaquetas de couro. O cinema de Jia parece atravessar a imagem, desvendando o movimento do mundo, movido por uma dialética entre o yin e o yang, para usar uma metáfora chinesa. “24 City” é talvez o ápice dessa estratégia narrativa.

4 Nota do Crítico 5 1

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