相 xiàng
Questionar a irreciprocidade
Por Pedro Mesquita
Durante o Festival Ecrã 2022
O termo “cinema estrutural” — cunhado pelo crítico P. Adams Sitney ao final da década de 1960 — é utilizado para designar aqueles filmes que tomam como assunto a sua própria forma, a sua própria estrutura. Segundo Sitney, esses filmes são “um cinema da estrutura, no qual o formato do filme inteiro é predeterminado e simplificado”. Exemplos conhecidos desse tipo de cinema incluem “Wavelength” (1967), de Michael Snow, construído a partir de um único plano que, ao longo de 45 minutos, percorre um movimento frontal até alcançar um determinado objeto, e “Serene Velocity” (1970), de Ernie Gehr, que examina as alterações de percepção que a câmera provoca ao realizar movimentos cada vez mais bruscos num determinado espaço.
Tudo isso, é claro, ainda não nos disse nada sobre “相 xiàng”. Mas foi importante dizê-lo para que constatemos que o filme de Vitória Severo tem um forte rigor estrutural. Ainda que ele não possa ser comparado, nem de longe, aos filmes de Snow e Gehr, ele compartilha com eles aquilo que Sitney disse sobre uma forma predeterminada e simplificada. O filme abre com três cartelas, cada uma delas apresentando, uma após a outra, uma frase: “ouvir por meio de sons captados por outras pessoas” / “ver por meio de imagens captadas por câmeras de vigilância” / “questionar a irreciprocidade”. Dessas três frases, pelo menos as duas primeiras demarcam com clareza os tipos de imagem e os tipos de som que serão ouvidos ao longo da sessão. Ademais, quando o filme começa efetivamente, o rigor estrutural da obra se faz especialmente evidente: percebemos logo que o filme justapõe todas as imagens em um ritmo regular — passamos alguns minutos em um plano, após o qual virá outro de duração similar, e assim sucessivamente. As “regras”, portanto, estão dadas, e o filme as seguirá à risca durante as suas duas horas de projeção.
Os meios estão fixados. Mas a que fim se dirige “相 xiàng”? O filme não parece ter a ambição quase científica que Snow e Gehr tinham quando realizaram “Wavelength” e “Serene Velocity” — em ambos casos, a repetição dos mesmos movimentos de câmera eventualmente dá lugar a uma diferente percepção das coisas; dá lugar a um salto qualitativo que faz o filme exceder a condição de uma mera soma de suas partes. “相 xiàng”, por outro lado, é exatamente isso: a soma (levemente monótona, dada a longa duração e o alto número de elementos somados) de suas partes.
O que “相 xiàng” constrói, então? Podemos recorrer àquela terceira frase que deixamos de lado anteriormente a fim de buscar dicas para esta resposta: “questionar a irreciprocidade”. Terá o filme de Vitória Severo se constituído numa espécie de crítica da sociedade da vigilância, na medida em que as imagens dessas câmeras nos olham sem que nós tenhamos consciência de que estamos sendo olhados? Esta hipótese não encontra bases sólidas no filme em si, já que boa parte dos planos sequer inclui seres humanos; muitas vezes a presença humana até se faz presente, mas apenas por meio do som (elemento este que foi acrescido às imagens a posteriori, coisa que o filme revela em seus créditos ao indicar que os áudios foram coletados de um banco de sons royalty-free).
É possível, portanto, que “相 xiàng” não busque o tal salto qualitativo; que ele não articule uma crítica social; que ele não “construa” efetivamente nada. Mas isso não o torna necessariamente incompetente: uma possibilidade de leitura pode ir na via oposta à da crítica social, dizendo que o filme objetiva a simples contemplação das imagens. Ao menos neste departamento, o filme pode se redimir: algumas imagens são, de fato, belas (a despeito de não terem sido pensadas para tal), e o ato de observar o cotidiano de alguns cidadãos chineses durante o ano de 2021 não é sem seus momentos curiosos (ainda que as suas ações apareçam sempre “congeladas”, devido à baixa taxa de frames das câmeras de segurança).
Se esse prazer encontra lastro na ética ou não, porém, é uma outra discussão. Afinal de contas, não deixa de ser minimamente inquietante o fato de que as nossas “vistas Lumière” do século XXI aconteçam sem o consentimento das personagens enquadradas e sob a impassividade de uma câmera que registra fixa e automaticamente os seus objetos. Mas já que a crítica se ocupa menos da moral que da estética, o texto se encerra por aqui.