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Zinzindurrunkarratz

O motivo da vida e o remendo da história

Por Letícia Negreiros

Durante o Festival É Tudo Verdade 2024

Zinzindurrunkarratz

Luis Buñuel diz que nossas memórias são nossa coerência, nossa razão, nossa ação, nosso sentimento. Diz que, sem elas, não somos nada. Essa ideia ecoa em  “Zinzindurrunkarratz”, de Oskar Alegria. Ao viajar pelas histórias que tecem o prelúdio de sua existência, ele nos convida a refletir como somos resultantes de múltiplas narrativas. Revisitar esses relatos lhe rendeu o prêmio de melhor documentário internacional do festival É Tudo Verdade 2024. Mais que isso, revisitar essas memórias nos faz questionar onde estão nossos prelúdios. 

“Zinzindurrunkarratz” é, antes de tudo, uma ode à mídia física. Seu ponto de partida é a Super-8 do pai de Alegria, já antiga, incapaz de captar som. Segundo o próprio, jornadas ao passado nunca são perfeitas. Ele nos convida a abraçar esse pequeno empecilho e o transforma em linguagem, comparando sua escolha narrativa com a técnica de Kintsugi. No Japão, se remenda objetos quebrados com ouro; aqui, ele remenda o filme mudo com sons sem imagens. As imagens da câmera, sem áudio, são como o documentarista enxerga e caracteriza as memórias: imperfeitas e preciosas; falhas, mas com potencial narrativo inigualável. 

Usando desses fragmentos capturados inteiramente pela Super-8, Alegria inicia uma narrativa sobre um caminho. Literal e sentimentalmente. “Zinzindurrunkarratz” usa a trajetória do companaje para refazer os passos que levaram a família do diretor até o lugar onde Oskar Alegria começa.  

Seu avô vivia entre os pastores de Artazu, um município espanhol. Era o responsável por levar comida e mantimentos do vilarejo até os pastores nas montanhas – companaje. Alegria faz do caminho físico feito por seu avô tantas vezes há tantos anos a linha narrativa do documentário. Partindo de Artazu, ele vai atrás do último pastor da região, caçando os sons do passado e gestos esquecidos pelo caminho. 

Há um paralelismo traçado na forma como os relatos são capturados nesse longa. Não podemos ouvir as histórias, então os narradores não veem o que contam. Todos os entrevistados, personagens achados ao acaso na trajetória das montanhas, contam suas lembranças de olhos fechados. Nossa única conexão direta com o tom dessas narrações são os remendos sonoros inseridos em meio aos retratos dos contadores. 

Nota-se, então, o desenrolar de duas camadas narrativas: a imagética e a sonora. A primeira é a mais óbvia. Vemos Paolo, o burrinho que acompanha Alegria, vemos as paisagens e somos guiados pelas legendas. A segunda é um pouco mais delicada de se mapear. Pelo espaçamentos, pode não parecer muito coesa, mas passa uma mensagem por si só. 

Como pontuado pelo documentarista, alguns locais ao longo desse caminho foram batizados pelos sons que emitiam. Seja a água da cachoeira, as pedras caindo ou os raios tocando o chão, os sons para os pastores e as pessoas dos vilarejos eram régios, magnos na forma de se conceber o mundo. Alegria reproduz essa percepção nos áudios que insere no filme. Eles ditam o tom da narrativa, induzindo a forma como recebemos as imagens e informações da legenda. Guiam, ainda, o tom emocional da narração. As nuances dos ruídos de Paolo e as canções de ninar inseridas nos remendos nos envolvem e nos levam para as vielas entre as montanhas. Nos envolvem no conforto das memórias de Alegria.

“Zinzindurrunkarratz” nos recompensa com um final catártico. Ainda restavam dois rolos de filme para Super-8 capazes de captar som. Por um milagre, eles funcionam. Alegria encontra o último pastor. Os sons do passado são achados e os gestos de outrora são lembrados. Encontra-se um uso prático para a memória até então um tanto imperfeita: reconstruir e ressignificar. O que poderia ser um desfecho previsível assume uma roupagem acalentadora que arremata muito bem a narrativa proposta pelo documentário. 

A memória precisa ser vivida. “Zinzindurrunkarratz” nos lembra que somos feitos de memórias, nossas e de outras pessoas. Nos lembra que uma vida sem memórias não seria, de fato, uma vida. 

5 Nota do Crítico 5 1

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