Youth (Spring)
O épico têxtil pelo submundo do capitalismo
Por Fabricio Duque
Durante o Festival de Cannes 2023
É, parece mesmo que o tempo do diretor Wang Bing é diferente do resto do cinema. Em seu mais recente filme, exibido na mostra competitiva a Palma de Ouro do Festival de Cannes 2023, “Youth (Spring)” busca ser uma experiência contemporânea de antropologia social, porque sua estrutura quer captar os comportamentos mais inerentes e intimistas de suas personagens. Isso faz com que o filme reflita causas e consequências desse nosso mundo. Com suas três horas e trinta e cinco minutos de duração, os espectadores são convidados a imergir nessas vidas acontecendo, em tempo real e em constante sobrevivência, de suas personagens que estão à margem da sociedade, mas que são as “peças-chaves” para que a engrenagem do sistema de seus próprios mundos decadentes continue a acontecer pelo equilíbrio natural das coisas. “Youth (Spring)” é acima de tudo uma crítica a uma estrutura que transforma esses jovens em serviçais sem tempo, sem dignidade e “máquinas” de trabalho.
“Youth (Spring)” começa na ação, ambientando-se numa quase clandestina fábrica de costuras de roupas. Suas personagens existem nesse cotidiano, entre brincadeiras, competições para saber quem é mais rápido, diversões-pegadinhas e músicas bregas românticas, cantadas por eles. Cada um ali vive um mundo de fantasia alienado, talvez por precisar do dinheiro e/ou talvez por já ter se acostumado com a situação-estágio em que se encontram. Tudo isso é envelopado por uma narrativa estética de fotografia saturada ao neon e à luz artificial dos interiores sem janelas, e por sons atravessados, além das câmeras subjetivas. Wang Bing deseja que sua ficção tenha a forma documental pelo tom mais caseiro e amador de sua criação. Há um que de Charlie Chaplin em “Tempos Modernos” com a improvisação interpretativa da cena mais ao molde de Jia Zhangke e seu “Plataforma”.
O longa-metragem, que aqui está chamado como working-class, parte da artificialidade para aprofundar as críticas sociais ao adentrar profundamente na intimidade da vida deles, como a exploração trabalhista (em nível escravocrata, ainda que seja vendida a ideia de que todos ali são importantes para a economia mundial – e que os obrigue a produzir em massa e numa pressa inviável). “Youth (Spring)” cria todo o tempo o questionamento se é o não documentário, por tudo parecer teatro. Mas na verdade isso realmente não importa, ainda que percebamos as conversas mais encenadas e ações mais afoitas e mais passionais. Aqui, o filme busca ir além. Potencializa a crueldade nas relações humanas que se aprisionam voluntariamente (por necessidades extremas) ao submundo sujo, fedido e de condições desumanas para trabalhar. Isso traz à tona a Síndrome de Estocolmo, em que esses seres acreditam realmente que aquela é sua bolha e seu mundo. E que não é preciso mais nada para ser feliz. Apenas um dormitório e um macarrão. Talvez um celular, uma namorado ou namorado e uma briga de vez em quando para “movimentar” a rotina.
“Youth (Spring)” é um retrato de um mundo dominado por um capitalismo desenfreado, que já se instalou como um vírus que já corroeu as percepções de muitos indivíduos e que retroalimenta o círculo vicioso da demanda eterna. Isso produz “zumbis” que aceitam passar o final de ano dentro desses lugares. Sem expectativas de futuros e sonhos. São resignadamente submissos a uma vida que os despreza (mas que precisa e muito deles). É um paradoxo da resiliência, entre lixos no chão. O longa-metragem nos cozinha em “banho maria” para nos “acordar”. Para estimular nossos questionamentos mais revolucionários apenas pela contemplação dessas existências simplistas. E ao retirar os artifícios mais estilizados à ficção, aumentar a organicidade do que vemos e quebrar os muros que nos “protegem” da realidade pela fantasia, “Youth (Spring)” consegue nos atingir com a verdade por trás de embalagens.
Aqui, o filme nos oferta bastidores dos trabalhadores têxteis na cidade chinesa de Zhili e sadismos de um capitalismo que compramos todos os dias e que fechamos os olhos para que continuemos a ter tudo que nos é obrigado a consumir. É uma bola de neve. Ah, e sim, “Youth (Spring)” foi vendido como um documentário. Mas de novo quem se importa com tais definições? “Youth (Spring)” é uma experiência imersiva. Um experimento social. Um estudo do micro para pontuar o macro. Confesso que a todo momento esta obra me lembrou de “Estou Me Guardando Para Quando o Carnaval Chegar” (2019), do realizador brasileiro Marcelo Gomes, sobre a cidade de Toritama, um microcosmo do capitalismo implacável: a cada ano, mais de 20 milhões de jeans são produzidos em fábricas de fundo de quintal. Pois é, também documentário. Dessa forma, para concluir, “Youth (Spring)” é mais um exemplo de que estamos presos a esse modelo mundial de “espreme” os funcionários até a última gota de suas energias e depois os “substitui”. Há salvação? Ou todos ali são apenas mão-de-obra em potencial? O diretor Wang Bing filmou de forma pessoal em quatro anos, de 2014 a 2019. Seu documentário anterior “Dead Souls” (com 495 minutos), foi exibido fora de competição no Festival de Cannes 2018 e seu primeiro filme “A Oeste nos Trilhos” tinha com 554 minutos.