Yannick
Recepção nada passiva
Por Pedro Sales
O modelo mais simples de comunicação é calcado em três elementos: emissor, mensagem e receptor. De certa forma, a arte também se adapta a tal fluxo. Em uma adaptação, pode-se definir: artista, obra, público. Apesar de no modelo de comunicação há possibilidade da interlocução estabelecer o diálogo, na arte, por sua vez, muitas vezes o receptor-público está em uma posição passiva, inicialmente recebendo a obra e, posteriormente, refletindo, interpretando ou criticando, como aqui acontece. Portanto, há um alto grau de passividade do público, que não pode mudar os rumos de um filme, música, livro e afins. Existem, porém, algumas mídias, suportes e artes que se estruturam na interação com o público, como teatros interativos, shows de stand-up, realities shows e até filmes interativos, como “Black Mirror: Bandersnatch” (2018), em que o espectador faz escolhas durante a rodagem que alteram o destino do protagonista, com a possibilidade de vários finais.
Fato é que, mesmo diante desse caráter passivo e talvez impotente diante de uma obra, isto não impede que o público se emocione, se envolva e se permita em alguns momentos até “conversar” com os personagens, pedindo que ele não entre no porão, para me valer de um clichê do terror. Mas e se esse status espectatorial de apenas observar sem ter poder nenhum fosse alterado. Um bom exemplo dessa inversão e conexão com a obra é o metalinguístico “Rosa Púrpura do Cairo” (1985), de Woody Allen. Outro exemplo igualmente metalinguístico, mas muito mais satírico, é “Yannick” (2023), filme dirigido pelo francês Quentin Dupieux, também conhecido pelo nome artístico de Mr. Oizo, usado na carreira musical do diretor. Enquanto na obra de Allen, a quebra da passividade e a interação do público com a obra se dá no contexto do cinema, o que garante um caráter fantástico à obra, neste filme ocorre no teatro. Por mais que seja uma arte que permite a interação em alguns momentos, a depender da intenção do dramaturgo, normalmente o teatro está associado com o silêncio do público, o qual é rompido pelo personagem título desta comédia.
Yannick (Raphaël Quenard) é um segurança noturno que, em uma rara folga, decide ir ao teatro para se divertir. Para chegar até lá foram 45 minutos de transporte público mais 15 andando, conforme ele explica algumas durante a rodagem. A peça em questão, chamada “O Corno”, reúne os atores Paul Rivière (Pio Marmaï), William Keller (Sébastien Chassagne) e Sophie Denis (Blanche Gardin) na história de um casal em rompimento após a descoberta de uma traição. O problema, pelo menos para o protagonista, é que a peça não é nada boa. Ele até tenta aguentar os minutos iniciais, mas tudo muda quando ele toma coragem, em uma recepção nada passiva, para bater boca com os atores e reclamar do que vê no palco. O homem expõe seus problemas com a falta de humor de “O Corno” e até vai embora. Do lado de fora, pegando o casaco, Yannick ouve risadas vindas de dentro do teatro. O ator Paul Rivière, no palco, faz troça do desabafo sincero e ingênuo do segurança noturno, o suficiente para romper com a recém ganhada paz e motivar o homem insatisfeito com o teatro a fazer todos de refém, de arma em punho, e obrigar os atores a apresentarem uma nova peça.
Esse caráter absurdista, metalinguístico e satírico já faz parte da filmografia de Dupieux. Em “Rubber – O Pneu Assassino” (2010), por exemplo, faz-se piada de convenções do slasher. Seu novo longa “O Segundo Ato” (2024), que abriu o Festival de Cannes deste ano, também tende ao satírico em relação ao cinema, segundo as primeiras críticas. Portanto, esse é um terreno muito fértil para o cineasta, e aqui há também um tom crítico para a própria relação entre público e artista. Ao explorar limites, “Yannick” faz uma reflexão sobre a própria atividade crítica, de certa forma. No contexto do filme, uma violenta, instantânea e questionadora antes mesmo do fim da peça. Abre-se espaço, assim, para outra reflexão sobre a própria arte: em que medida deve ser entretenimento ou provocadora? Essas são questões que pairam por toda rodagem, em uma trama cômica e cada vez mais inusitada nos curtos 67 minutos de duração.
Neste sentido, a escolha por um filme curto e conciso é acertada para não estender bastante a premissa, que já é por si só interessante, e enfraquecer a obra. No início, Dupieux opta formalmente por filmar a peça como um teatro filmado, de fato, mantendo o espectador imerso naquela apresentação, como se estivéssemos também no teatro ao lado de Yannick. É quando o personagem rompe com a monotonia que a trama vai avançando de uma maneira absurda. É interessante como o cineasta, por meio do humor, esvazia a tensão da situação com os reféns, o cenário da peça também contribui para isso ao relembrar o público do motivo do sequestro. O protagonista conversa com os demais espectadores da peça, faz piadas e, por momentos, formam um laço meio Síndrome de Estocolmo. Mas, mesmo assim, ele consegue por meio dos closes reforçar um possível perigo, pela presença da arma e pela inépcia de Yannick em usá-la. Em certo momento a atriz até promete sexo para seu colega caso ele consiga desarmar o espectador insatisfeito. Ou seja, é uma obra que se estrutura bastante nessa comédia mórbida, muito engrandecida pela performance de Raphaël Quennard na pele deste homem desafiador, desbocado e que só queria se entreter na noite de folga.
Dessa forma, “Yannick” consegue questionar os papéis de artista-público, a suposta função da arte de entreter e até mesmo os processos de comunicação, uma vez que se levantar da cadeira para apontar a falta de humor é uma quebra do paradigma proposto no teatro. Tudo funciona pelo texto afiado, extremamente engraçado e satírico de Dupieux. Com a situação de reféns e quando o personagem propõe que os atores apresentem um texto melhor, feito por ele mesmo, digitado com dois dedos enquanto mantinha o trio de artistas e o público sob a mira da arma, o filme mergulha mais no humor absurdo. Em alguns momentos, é como se Yannick se tornasse uma espécie de Rupert Pupkin, personagem de Robert De Niro em “O Rei da Comédia” (1982). Levando a situação a extremos da segurança física dos envolvidos, no fim das contas, ele só quer ser rei por uma noite em vez de um idiota pelo resto da vida, como os planos finais evidenciam com o sorriso dele ao ver sua peça fazendo o que a anterior não conseguiu: arrancar risos da plateia.