Vitória
Não há vencedores na busca desta verdade
Por Fabricio Duque
Ao passar dos anos, o mundo parece mesmo retroceder sua evolução natural, principalmente no aspecto fraterno das relações interpessoais, tornando-se mais hostil a seus participantes, como se a realidade quisesse mais uma imersiva e, exageradamente, sensorial experiência de mundo cão. Sim, é uma paradoxo dos tempos modernos, que alguns chamam de mortos por faltar o elemento humano da empatia para com o outro, porque se lutou tanto pela liberdade e agora os indivíduos precisam viver sozinhos suas próprias “prisões”. Todas as vicissitudes derivativas da “noite escura”, entre inquietações, aflitos, desafios, vulnerabilidades, são “sinônimos” para que este ser social prefira a introspeção da agressividade defensiva e/ou pela entrada no universo das drogas. Mas tudo isso não é tão simples de explicar e definir causas primárias, visto que a complexidade reside numa sequências de permissões que a História permitiu, até mesmo trocar “mata” por “morro”. E o cinema, logicamente, busca acompanhar esse espelho atual mais cínico, mais desumano, mais alinhado à ideia de cada um por si. Sim, o individualismo atingiu um nível que ninguém mais se importa com o outro. Se um pouco antes, havia um resquício de educação social, hoje soa como se não houvesse redenção ao comportamento humano.
É, mas nem tudo está perdido. Sempre há uma pessoa fora da curva; uma andorinha que tenta fazer verão; um ser que resolve se importar. Uma nova representação disso está na mais recente obra “Vitória”, de Andrucha Waddington, que assume postumamente o filme após a morte de Breno Silveira. Antes precisamos entender a forma criativa de cada um dos cineastas. Os dois, da Conspiração Filmes, tinham em mente desejar a mesma estética narrativa pelo visual. Mas se Breno trazia mais o querer da comoção, Andrucha vem com um realismo publicitário mais pragmático e menos emocionado. E assim, com uma visão distanciada do ambiente abordado, mais privilegiada, financeiramente, e sem lugar de fala (por não vivenciar o cotidiano do que retrata). Tudo isso é impresso em “Vitória”, um longa-metragem “estrangeiro”, que acontece pela superfície de uma percepção mais aceita, confortável e já internalizada de todos que comungam diariamente os percalços, problemas, impunidades, impotências e decepções da violência no Rio de Janeiro, que atravessa “limites permitidos”, mitiga espaços e chega a Zona Sul, reduto mais elitista dos cariocas, ainda que foque sua trama em 2005.
Assim, “Vitória” é lançada neste momento para atender (e aproveitar) algumas demandas midiáticas, desafiar-se pelas liberdades poéticas e aprofundar muitas camadas sobre os impactos desse caos referido nos parágrafos anteriores. A primeira por seguir o sucesso de “Ainda Estou Aqui”, visto que aqui é a segunda produção original da Globoplay, que também tem a Sony por trás e traz no elenco, como protagonista, a atriz Fernanda Montenegro, mãe de Fernanda Torres, as duas por sinal que estão no filme de Walter Salles. A segunda é investir e acreditar na resposta cúmplice do público em meio a tantas falhas e vulnerabilidades do roteiro, que se preocupa majoritariamente com o tema e as repercussões sociais. E por último, a problematização da “invasão” do tráfico de drogas de frente às janelas de apartamentos em Copacabana. “Vitória” é uma história real sobre essa andorinha, uma senhora que peitou a polícia para fazer o certo. Talvez a essência do filme esteja na crença da mensagem ficcional de que ainda há esperança. Talvez a melhor definição seria a ingenuidade em processo de desumanização.
É por isso que “Vitória” me causou um rebuliço de contradições morais. Se de um lado, encontrei a narrativa do filme ritmada e precisa para aprofundar essas camadas todas sobre a violência carioca, então, por outro, vi uma obra extremamente tóxica, maniqueísta, estereotipada e preconceituosa sobre a favela e seus moradores de lá: todos “marginais”. Mas voltando ao primeira lado temos a interpretação de Fernandona, com 95 anos, uma atriz ainda lúcida, perspicaz e espirituosa, que recria a personagem real, uma senhora preta que filmou toda a movimentação do tráfico e a negligência policial de sua janela. Está aí o embate: oportunismo ou arte em liberdade poética? Os temas precisam ser mais superficiais e mais “brancos” para atender a cadeia cinematográfica de distribuição comercial? A minha contradição foi porque eu gostei do filme. Mesmo com todos os “buracos” do roteiro. E depois me senti estranho, porque de certa forma eu ajudei a perpetuar esses arquétipos e as “reuniões de condomínio”, ainda que a personagem ficcional tenha a ajuda de um repórter policial preto e ainda que não veja cor da pele e/ou diferenciação em homem ou mulher, no caso de uma vizinha travesti (a atriz Linn da Quebrada), que também objetifica uma criança preta como “perigo”.
“Vitória”, inspirado no livro “Dona Vitória Joana da Paz: A história da heroína por trás da câmera que mudou os rumos de um bairro e marcou o país”, de Fábio Gusmão, o jornalista que escreveu a matéria, é um filme de cenas, de instantes, de detalhes. Um filme feito para Dona Fernanda brilhar. Um filme cinema direto, em que quer incorporar o elemento orgânico do cotidiano real. E assim aparecer uma moradora idosa, “mais uma” na multidão, que vive sozinha, que escuta seus sambas antigos na vitrola, que ainda trabalha como massagista por dinheiro, que está em processo de humanizar seu conservadorismo (e entrar no “jeitinho carioca” de ser) e encontra pessoas sem paciência no trato-tato social. Que vê que seu mundo de antes não existe mais. Neste momento, minha percepção viajou e acessou a senhora do filme iraniano “Meu Bolo Favorito”. Mas aqui o perigo é maior: tiros, susto, medo da morte e a metáfora da xícara quebrada. “Alvo parado é mais fácil de ser acertado”, diz e quer se “movimentar”.
Pois é, como disse, há muitas falhas no roteiro, uma delas é questão da filmadora entregue. Isso incomoda, mas nós focamos mesmo na trama e sua tensão natural derivativa em nossas emoções reais. E por trazer desdobramento argumentativo, a dessa senhora ter 95 anos e não mais sentir medo de nada por já viver “demais”. Ela assume o risco porque já não tem mais nada a perder. Ela então faz o certo (ainda achando que isso a torna também uma “bandida”), entra na Proteção à testemunha, muda de nome e de cidade. É, quanto mais penso sobre o filme, mais aumento minhas contradições e minha sensação pessimista de que o mundo nunca terá mesmo um respiro. Quem vence então? Vitória para quem?