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Varda Por Agnès

A singela completude de uma vida por imagens

Por Fabricio Duque

Varda Por Agnès

Traçar linhas sobre a cineasta Agnès Varda é antes de tudo embarcar na essência do ser humano, existente com outros indivíduos patologicamente diferentes e idiossincráticos. A diretora, uma precursora do movimento francês Nouvelle Vague, conseguiu representação além de sua representatividade de ser mulher e casada com o diretor Jacques Demy (de “Os Guarda-Chuvas do Amor”), transcendendo a própria arte de fazer cinema ao construir a poética e coloquial realidade lúdica. Seus filmes dialogam e participam da vida como ela é, desta que vivemos todos os dias com nossa mais pura espontaneidade.

Ser humano para Agnès é existir unicamente. E com seu olhar detalhista, feminino (sem ser feminista), sensível e delicado, o público embarca em um estágio analítico não didático, tampouco de inflamado e obrigado discurso político-social, mas sim de contemplação da mais intensa simplicidade. As histórias ganham mais vida e importância e com sua pensante estética imagética de conduzir vanguarda com arte, propositalmente amador e caseira, as obras elevam-se a únicos, particulares, pessoais, orgânicas experiências documentais. “Nada é banal”, diz.

Seu último filme “Varda por Agnès”, exibido na 69ª edição do Festival de Berlim, devido ter deixado o mundo terráqueo sem a expectativa da volta, é um testamento e um epitáfio de sua carreira, em conversas e palavras, que trocam conhecimento. É um filme de gente sobre gente para gente. Que busca a intimidade, deixando de lado o sobrenome e humanizando o ser. É a tradução adjetivada autobiográfica. O público que não conhece Agnès pode entender suas escolhas narrativas e os que já a idolatram são convidados a aumentar a sinestesia amorosa de seu amor pelas imagens e pessoas.

A estrutura narrativa assemelha-se a de do diretor português Manoel de Oliveira e da diretora japonesa Naomi Kawase. “Varda por Agnès” tem seus créditos integrais no início, resquício do cinema de arte, que prerrogativa os profissionais que participaram da obra fílmica. “Inspirar, criar e compartilhar, os três verbos mais importantes. Criação é trabalhar. Fazemos filmes para mostrá-los. Tudo é importante”, disse em uma de suas palestras a uma atenta plateia interessada de diferentes faixas etárias. A cineasta explica o porque de filmar as imagens mais conceituais. É um cinema manual, um milagre. Filmo rápido com o que se tem”, complementa sobre os “medos coletivos” de uma “maioria silenciosa” e da “dificuldade de ilustrar o tempo”, contra “chiliques dramáticos em teatralizar emoções”.

Agnès analisa seus filmes e os motivos de cada plano. É uma aula mestra principalmente por sua visão de otimismo crônica em nunca perder a esperança. E de ir além, crescendo nas adversidades do caminho. Se em “Visages, Villages”, seu documentário anterior, que co-dirigiu com JR, a viagem é road movie, aqui em “Varda por Agnès” (inicialmente um documentário para televisão), o caminho internaliza-se a fim de mergulhar o espectador na mais inconscientes e primitivas ideias da homenageada.

Entre “realidades tangíveis”, fotos, memórias, realizações, “energias recicladas”, “alegrias”, “minoria enfurecida”, “melancolia da noite”, “sonhos”, “devaneios”, “cinema vazio”, esta cineasta e fotógrafa belga (que nos deixou em 29 de março de 2019, aos noventa anos de idade), radicada na França, serviu ao mundo uma abordagem de questões referentes à realidade no documentário, ao feminismo “meu corpo me pertence” (em música estilo Bob Dylan) e ao comentário social. Entre tantos títulos, cinquenta e quatro créditos no Imdb, podemos destacar “Cléo das 5 às 7”; “As Duas Faces da Felicidade”, “As Criaturas”, “Os Renegados”, “Os Catadores e Eu”, “As Praias de Agnès”.

Agnès passou pela transformação do cinema, conheceu todos os importantes (como o Sr. Buñuel e Jane Birkin, trabalhou com Robert de Niro, perdeu-se em Los Angeles, trocou vanguardas com Andy Warhol, fez “ficção utópica”, colagens) reciclou-se, mas nunca mudou sua condução artística, reconstruindo a própria linguagem cinematográfica. Um gênero novo: o estilo Varda. Com espirituosas e perspicazes manifestações-teatro e instalações “casa cinema” conservou “gestos simples, porém precisos” do “céu, mar e terra” na “praia, um escape mental”. Brinca com a metalinguagem e o lúdico infantil; “criminologia versus cronologia”; fantasia assaltada de realidade. “Criatividade, se tem, não se compra”. Repetições de cenas e close extremo como narrativa. “Não parar o tempo, mas acompanhá-lo”, diz como a “liberdade referencial à arte de Picasso”.

“Varda por Agnès” é sobre momentos, encontros e revisitações existenciais, como uma apresentação curricular da “extrovertida versus a entristecida”. É sentir, contemplar e vivenciar. De trilha cativante, frágil e doce. De contradição fundamental de cumplicidade entre quem é filmado e quem filma. Em que tudo que se precisa é um “ponto de vista”, e este sempre foi pululado de infinitas possibilidades a esta velhinha com alma mais jovem que muito adolescente por aí. Agnès sai de cena (ou “deixa o prédio”) para se tornar a areia da praia na mais inocente e pura lembrança de um dia que nunca se quer acabar.

5 Nota do Crítico 5 1

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