Urubus
Anarquia em SP
Por Pedro Sales
“Arte como crime, crime como arte” – Hakim Bey
O pixo é uma manifestação cultural urbana que reafirma a presença nos espaços. A escrita em forma de pichação surgiu em um contexto de contracultura e insatisfação diante da conjuntura político-social. Portanto, desde sua gênese, o ato de pichar é um protesto. Os debates recentes passaram a enquadrar o pixo como arte, não só pela questão estética das fontes, mas também pela expressão do pichador. As interseccionalidades entre pixo e arte, no entanto, ainda não são totalmente aceitas, sobretudo por uma ala mais conservadora. A técnica continua à margem, ocupando prédios, e não galerias. Em “Urubus“, longa vencedor do prêmio de crítica e do público na 45ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, a frase que abre este texto está sempre em voga. Pixo é arte, mas o ato de pichar é crime. Esse impasse paradoxal foi vivido por Cripta Djan, artista pichador que esteve presente na invasão da Bienal de 2008, que assinou o roteiro do longa junto do diretor Cláudio Borrelli e de Mercedes Gameiro.
O letreiro inicial que atesta “inspirado em fatos reais” já aumenta a sede do espectador pela verossimilhança. O fato que ocupa a História e a narrativa é a já citada invasão à Bienal de 2008, em que pichadores ocuparam o vazio branco do museu com suas tintas. Trinchas (Gustavo Garcez) e seus amigos são um grupo de pichadores em São Paulo. Autointitulados “Urubus”, os jovens saem pela noite visando novos prédios, escalando e finalmente os pichando, deixando sua marca. Fora desse ciclo, Valéria (Bella Camero), estudante de arte, se aproxima deles para realizar um trabalho da faculdade. No longa, nota-se a prevalência da vida noturna em detrimento do dia, ao mesmo tempo isso transmite a sensação de clandestinidade que é facilmente evocada por Borrelli. Assim, as atuações naturalistas, que preservam gírias e expressões típicas do “paulistês da quebrada”, contribuem ainda mais para a imersão no universo dos pichadores, pendendo a um aspecto, inclusive, quase documental.
“Urubus” preza pela análise da dinâmica urbana e da disputa de espaços. As pichações compõem o espaço urbano, são manifestações quase onipresentes nas cidades, principalmente em São Paulo. O longa trata a todo momento da ocupação do espaço. Eles se deslocam da periferia para o centro para, por meio da pichação, se fazerem ser vistos pelas classes mais altas. É disso que se trata o pixo, em primeiro lugar. A invasão à Bienal é a melhor representação disso. O ambiente elitizado, de “boy”, como eles mesmos dizem, é confrontado pela arte-crime, pelo ato marginal de pichar. A periferia ocupa, então, o espaço da elite e o transforma. Em outro contexto, a disputa por espaço não diz respeito apenas à transição periferia-centro, mas também entre os próprios pichadores. Cobrir o “rabisco” do outro é uma afronta que pode terminar em pancadaria ou coisa pior. Durante a narrativa, o cineasta emerge na cultura da pichação e suas nuances. Entretanto, ele felizmente nunca o faz com didatismo, não deixa tudo “explicadinho” sobre esses detalhes com diálogos expositivos.
A abordagem formal da direção de Borrelli rejeita toda higienização e narrativamente evita a romantização ou o punitivismo barato. Se São Paulo é escura, cheia de pixos nas paredes, a imagem também segue esse caráter de desordenação. A câmera, quase sempre na mão, treme junto da tensão dos conflitos. A montagem, às vezes, descontínua faz saltos temporais. As luzes estroboscópicas na festa antecipam o risco. Ao transpor a clandestinidade, a sujeira, o caos e a anarquia, o cineasta faz justiça aos seus personagens e ao que a narrativa representa. Existe também um evidente destaque às sequências das pichações. A fotografia transita pelo escuro e pelo contraluz para demonstrar o espírito contraventor que repousa nos telhados de altos prédios. Dessa forma, a mise-en-scène demonstra urgência nas ações e o risco, tanto de prisão quanto de queda por estarem pendurados. Nesse sentido, o longa propõe de fato consequências aos atos, enriquecendo-o dramaticamente, contando às vezes até com inserção de óperas para reafirmar o sentimento.
“Urubus” ao se inserir na realidade dos pichadores questiona limites entre arte, crime e a ocupação do espaço urbano. O naturalismo das atuações, como a de Garcez e Santaella, que interpreta CLB, corrobora para a construção desse universo que é bem desenvolvido. O longa, porém, possui alguns problemas quanto às relações de seus personagens. O romance de Valéria e Trinchas, por exemplo, lida com os clichês de relacionamentos de classes sociais diferentes. O senso de companheirismo e união entre os Urubus, por outro lado, é prontamente assimilado como de fato uma família, conforme eles afirmam. Ao mesmo tempo, as questões familiares de fato são delineadas de forma rasa e até simplificada em razão do tempo. O destaque assimétrico para alguns dos membros dos grupo, por sua vez, é justificado. Mas, ainda assim é estranho constatar que um personagem parece apenas servir de saco de pancadas. Apesar destes eventuais pontos, o longa é bem sucedido na sua proposta de retratar o pixo nem sobre um olhar condescendente, tampouco julgador, mas com uma visão realista do movimento, contemplando os riscos e os desejos de ocupar espaços e anarquizar.