Uma Estranha Amizade
A contemplação pela companhia
Por Letícia Negreiros
“Anora“ (2024) consagrou Sean Baker na última cerimônia do Oscar. Levando as estatuetas de Melhor Edição, Melhor Roteiro, Melhor Direção e Melhor Filme, ele se tornou a primeira pessoa com quatro vitórias pela mesma produção. A quinta premiação do longa vem na conta de Mikey Maddison na categoria de Melhor Atriz, que desbancou nomes como Demi Moore, concorrendo por “A Substância” (2024) e Fernanda Torres, indicada por “Ainda Estou Aqui” (2024).
Baker iniciou no mundo da produção cinematográfica há alguns bons anos, seus primeiros lançamentos datam do começo dos anos 2000. Começou a ficar verdadeiramente conhecido com “Tangerine” (2015), longa gravado inteiramente com um iPhone 5S. O diretor sempre se mostrou um grande defensor e apoiador do cinema independente – como se observa em sua empreitada de 2015. Desde seus primórdios aborda narrativas de pessoas à margem da sociedade e trabalhadores sexuais. “Uma Estranha Amizade” (2012), irmão mais velho de “Tangerine”, é o precursor da característica que viria a ser tão marcante na filmografia do cineasta.
Somos apresentados a Jane (Dree Hemingway), que às vezes responde por Tess. Ela aluga um quarto no apartamento de Mikey (James Ransone) e Melissa (Stella Maeve), com quem trabalha como atriz pornô. Baker não faz um grande caso acerca da profissão das meninas. Encara apenas como isso, uma profissão. Somos apresentados ao trabalho de Jane em um escritório, com uma recepcionista e baias cheias de computadores. A gravação que acompanhamos é mecânica, sem qualquer emoção ou constrangimento envolvido. A personagem de Hemingway é muito tranquila sobre a situação, beirando até a apatia. Faz o que tem que fazer, volta para casa e passeia com seu cãozinho, Starlet (título original).
A atriz traz essa tranquilidade para tudo em sua vida. Está sempre sem pressa, sem prestar muita atenção ao seu redor ou ao seu efeito nas pessoas. Seu cachorro não late, apenas cochila. “Uma Estranha Amizade” pega a serenidade da personagem para sua cinematografia. A iluminação não varia de forma considerável, sendo radiante até mesmo em cenas noturnas – na medida do possível. É presente, mas não ofuscante e, aliada aos planos longos, com a câmera na mão e estabilidade oscilante, traz um ar contemplativo peculiar ao filme.
É uma contemplação de baixa energia. Assim como o cão homônimo e sua dona, Starlet não se importa muito com o que está à sua volta. Se importa em seguir com sua narrativa, a vida de Jane, que só ganha alguma turbulência com a chegada de Sadie, vivida por Besedka Johnson e sendo sua única interpretação. Se conhecem por acaso. Uma compra desimportante em uma venda de garagem coloca nas mãos de Jane uma soma surpreendente de dinheiro, antes pertencente a Sadie. Após algumas tentativas falhas de devolução, a atriz é movida por um senso de dever – ou talvez por culpa – a ajudar a outra.
“Uma Estranha Amizade” nos coloca diante de duas mulheres completamente distintas. Além da diferença de idade, Sadie sendo consideravelmente mais velha, a divergência das personalidades é gritante. Sadie é reativa e irritável, chegando até mesmo a chamar a polícia para Jane em certa ocasião. Elas, no entanto, são sozinhas. Baker não nos apresenta mulheres solitárias. Não lhes falta nada e não coloca figura mais velha em um lugar de pena ou compaixão. Elas se bastam, mas suprem um espaço na vida uma da outra. Não são co-dependentes, mas se agregam. É um contraste com outras pessoas no cotidiano de Jane, que lhe trazem conflitos e turbulências desnecessárias. Sadie é uma companheira que ela não necessariamente precisava, mas aprecia. A mais velha não usa Jane como solução de seus conflitos – no máximo pega algumas caronas -, nem a vê como substituta de pessoas de seu passado. São apenas amigas.
“Uma Estranha Amizade” nos proporciona uma bela experiência não sobre amizade, mas sobre conexões. Não vejo Sadie e Jane como amigas, mas como companhias. Apreciam a presença uma da outra e se doam nessa dinâmica, no entanto a existência na vida uma da outra não parece ser nada de grande impacto. A viagem que Jane dá para Sadie é um enorme acontecimento, definitivamente marcante para as duas, mas não causa impacto. É uma mudança palpável, mas não alarmante – como passar em um quebra molas.
Na época de seu lançamento, “Uma Estranha Amizade” causou algum burburinho, recebendo algumas indicações e premiações de destaque. Levou para casa o Prêmio John Cassavetes do Independent Spirit Awards de 2013 e foi a Escolha Oficial do Festival de Cinema de Londres em 2012. Foi indicado em algumas categorias no Festival de Locarno, concorrendo ao Leopardo de Ouro e colocando o nome de Sean Baker na disputa de Melhor Diretor.