Tudo sobre os primeiros movimentos do Festival de Cannes 2022
Abstinência, emoção, caos e cinefilia
Por Fabricio Duque
Abstinência. Ato de se privar de algo. Termo pertencente ao estoico e cristão, que traduz uma renúncia voluntária à satisfação de uma necessidade ou desejo. Isso no campo das ideias utópicas, porque na vida real os quereres de cada um de nós ganham uma ressignificação bem mais coloquial. Não estou a falar sobre a ausência física de psicotrópicos, tampouco de medicações mais dependentes do dia-a-dia, e, sim, de vontades incondicionais que foram aprisionadas por imperiosas obrigações de afastamento social. Sim, estou a dizer sobre a pandemia que assolou o mundo em 2020. De lá para cá, nós tivemos que aceitar mudanças. Do macro ao micro. Da rua à casa, remodelando assim o conceito de vivência intimista. Os festivais de cinema precisaram mudar seus formatos e formas. E logo após o de Berlim, o Planeta Terra fechou as portas.
O Festival de Cannes, foco nesta matéria Tudo Sobre, tentou até o último minuto para acontecer, só que não possível. Em 2021, muito talvez por pressão internacional dos anunciantes, saiu a seleção oficial e presencial. Porém, ainda com muitas restrições: quarentenas e impedimentos de entrada para quem não tinha passaporte da União Europeia. Pois é, os jornalistas brasileiros, credenciados, e agora com taxa extra de pagamento (destinada às questões climáticas), apenas leram passivamente as notícias. Alguns, ainda que com livre entrada, sofreram as rígidas regras. Podemos dizer que o ano passado foi protocolar, de cumprimento de cláusulas. É por tudo isso que neste ano a ansiedade de todos os habitués galgou picos abstinentes, provando que filmes possam ser assemelhados com doses e carreiras.
O Festival de Cannes 2022 é o retorno à normalidade. Ou como os DP (depois da pandemia) gostam de chamar de “novo normal”. O estar, então, presencialmente no burburinho na Riviera Francesa, na costa azul do mar Mediterrâneo, com sol e calor, representa o reencontro com o antes, de um mundo, não tão distante, que fornecia um sentimento de compreensão e conforto sobre as coisas. Chegar em Cannes após três anos bagunça nossas emoções e sensações. No meu caso, com prova no Stories do Instagram, a euforia e a felicidade desmedida de dar de cara com o Palácio dos Festivais. Sim, não há como explicar o porquê do Festival de Cannes mexer tanto com a gente. Talvez por sua cinefilia entranhada. Talvez pela tradição de detalhes: a colocação dos gigantes cartazes oficiais, do tapete vermelho, das coletivas de apresentação. Não sei. Je ne sais pas mesmo.
Mas algo diferente acontece dias antes de toda essa festa do cinema estrear. Como se fosse um portal a la “Strange Things”. Nós encontramos uma cidade mais impaciente com seus turistas, digamos até mais a potenciar o comportamento francófono. Na Fnac, por exemplo, seus funcionários irritados (talvez por trabalhar em um domingo), não falavam inglês de jeito nenhum. Tampouco o motorista de ônibus que me trouxe do aeroporto de Nice até Cannes. E inclusive um casal de franceses que riu quando errei a pronúncia de um sabor de sorvete. Sim, é preciso adaptar-se. a um prévio universo sem nenhum glamour. Se eu precisasse resumir, diria que Cannes só é Cannes quando “ganha” a globalização de ter todos os países convivendo juntos em uma única nação que é a República do Cinema. E logo no primeiro dia do credenciamento de imprensa. Há vida e um mesmo ambiente de respiro já acostumado. Pois é, mas o Festival de Cannes deste ano não está proporcionando tranquilidade.
Como disse, essa volta estas a gerar problemas e “dores de cabeça” por causa do novo sistema, visto que agora os jornalistas credenciados pegam seus ingressos de forma online e não há mais filas (à princípio, dentro dessa nova estrutura), as famosas rush lines. Essa dinâmica foi iniciada em 2021, ano que o festival aconteceu somente para quem possuía passaporte europeu (reitero a redundância em dizer que nenhum brasileiro estava permitido a entrar diretamente em solo francês). Mas qual o motivo desse preâmbulo? Tudo para noticiar que esse sistema de retirada de tickets, que se inicia às 7:00 da manhã (o que faz com que precisemos acordar às 06:40), criou um caos para todos que cobrem o Festival de Cannes. Lentidão, ingressos esgotados em um minuto após o horário inicial de retirada, erro de servidor, erro de programação, erro de sobrecarregamento, dificuldades de retirada da credencial (a espera ultrapassou duas horas).
É normal por causa da quantidade de pessoas acessando ao mesmo tempo? Não. O diretor oficial do Festival de Cannes, Thierry Frémaux (que já dirigiu o filme “Lumière! A Aventura Começa”, em 2016, sobre os Irmãos Lumière, “inventores do cinema”), ao ser bombardeado e posto contra a parede na coletiva oficial de apresentação, disse que o site-plataforma tinha sido “hackeado por robôs que retiravam os ingressos por segundos”. Será? Ou uma instrução do setor de informática a fim de livrar o festival de problemas-processos? Nunca saberemos, até porque, Thierry Frémaux, com ar sarcástico complementou que “nós cometemos erros, mas não com muita frequência”. Um jornalista canadense seguiu colocando mais fogo no parquinho: “E como resolver esse sistema que fez todos os credenciados aguardarem horas na fila e/ou não conseguirem os filmes?”.
A resposta padrão-protocolar do francês: “Estamos em processo de resolver essas questões técnicas”. À noite de ontem, no mesmo dia, nós jornalistas recebemos um email com novo um site-plataforma, na verdade, é o mesmo só que espelhado. Só que com os mesmos “errinhos”. Nossa, será que novos hackers descobriram também o “espelho”? Enfim. O que era para ser diversão, está tornando-se um episódio surreal de “Black Mirror”. No Twitter do festival, dezenas de jornalistas e profissionais do mercadoaudiovisual relataram raiva e frustração ao acessar o site. A matéria da revista Screen Daily foi direta e incisiva. “É justo dizer que o sistema de ingressos on-line de Cannes é uma bagunça embrulhada em um dane-se embrulhado em um enigma”, escreveu o jornalista Martyn Conterio. Propaganda negativa ao festival? Ué, mas a “culpa não é dos hackers?”.
Pois é, mas voltemos às flores e seguimos a canção. O Festival de Cannes não acontece só de problemas e erros. Este ano, os cinéfilos de plantão podem ficar radiantes com a mudança do nome da Sala Soixantième (aberta em 2007) para Sala Agnès Varda, porque era “a imagem de paixão, afeto e travessura”, uma “homenagem à cineasta que nos deixou em 2019”, “sessenta e cinco anos de criação e experimentação, quase a duração do Festival de Cannes”. Agnès Varda foi três vezes com filmes na seleção oficial, membro do Júri em 2015, ano que recebeu a Palma de Ouro honorária. Em seu discurso, disse “resistência e resistência, mais do que honra”, e dedicou “a todos os cineastas inventivos e corajosos, aqueles que criam filmes originais de ficção ou documentários, que não estão no centro das atenções, mas que continuam”.
A coletiva de imprensa com Thierry Frémaux seguiu praticamente o protocolo. As mesmas questões da guerra e gênero vieram à tona. A primeira foi sobre a escolha do filme russo “Tchaikovsky’s Wife”, do diretor Kirill Serebrennikov, para a competição oficial. O francês disse que “há duas interpretações sobre a questão do filme russo: defesa da liberdade e sobre aceitar e balancear essa escolha” e complementou com o “todo suporte ao povo ucraniano”. A segunda pergunta foi sobre a escolha de “Top Gun: Maverick” e a conversa com Tom Cruise. Thierry disse que “é um tributo a esse ator. Tom é muito dedicado ao cinema, é como ser um ator. O festival tem a tradição de inserir filmes Blockbuster. Durante anos fizemos isso”. Será que precisamos de um novo manifesto de um novo alguém com alma de François Truffaut e Jean-Luc Godard? Retóricas à parte.
Sobre a questão de filmes dirigidos por mulheres, Thierry levantou uma polêmica: “há um progresso e nós acompanhamos, mas escolhemos pelo filme e não se é de uma mulher ou de um homem, esse é nosso progresso, não de ideologia e sim de cinematografia”. Um dos jornalistas perguntou sobre a nova diretora do Festival de Cannes, já que este é o último ano de Pierre Lescure, e ressaltou a questão da substituta ser alemã. Entenda: no último 23 de março, a votação escolheu Iris Knobloch, executiva germânica que mora em Paris, e é a primeira mulher nas 75 edições do evento. Thierry Frémaux disse: “Ela é alemã, mas também francesa de coração”.
Outra mudança do Festival de Cannes foi a tradição das bolsas e catálogos. Este ano, o foco é ser Eco para “salvar o Planeta Terra”. Isso incluiu um taxa de 20 euros de todos os credenciados; a não mais ter o catálogo impresso (sem papel nenhum) e também sem os já conhecidos escaninhos, que eram alimentados com releases e informações impressos sobre o festival. Ok. Pausa para sermos seres espirituosos. Será que não passou mesmo pela cabeça do festival se utilizar desses artifícios para mostrar que não há verba suficiente? Até porque pela lógica o novo site-plataforma deve ser muito caro. Mais retóricas à parte. E para finalizar, a pergunta sobre os procedimentos sanitários de usar máscaras despertou deboche no francês: “Quem quiser usar, usa. Aqui por exemplo poucos ainda acham que o ambiente não é seguro”. Traduzindo: já “chutamos o pau da barraca”.
O Festival de Cannes 2022 começa hoje. Com a coletiva de imprensa do Júri oficial e com a cerimônia de abertura, que exibirá o novo filme de Michel Hazanavicius, “Coupez ! (Final Cut)”. Fique ligado na cobertura diária do Vertentes do Cinema. E nos acompanhe pelo site, pelas redes sociais (instagram @vertentesdocinema @fabricioduque_crítico). Bonne fête à tous !
2 Comentários para "Os primeiros movimentos do Festival de Cannes 2022"
Gostei muito da matéria, uma forma de conhecermos um pouco desse mundo de Cannes, e muito interessante e eficiente, não usarem papéis impresso, mas pairou no ar a dúvida da verba não ser suficiente, será?
Independentemente disso, acredito ser válido a atitude.
Qto as máscaras, eu tbm achei que tudo estava controlado, e nessa tô no sétimo dia de Covid, bem espero que tudo sobre essa pandemia se finda, fica só a dica, e cuide.
Um brilho no escuro, site preciso. Acompanho de longe sempre o festival, apenas sinto falta dos diários desse festival. O mais importante do mundo cinematográfico.