Tudo Sobre o Ano do Brasil no Festival de Cannes 2025
O evento francês homenageia a diversidade brasileira, especialmente a do Ceará e de Pernambuco, com Carlos Diegues e o samba de Vinicius de Moraes
Por Fabricio Duque
Não há como contestar o que se diz sobre o Festival de Cannes ser uma intensa experiência fisiológica. Ao vivencia-lo, adentramos em uma sinestesia pulsante que altera nossas emoções. Nosso comportamento é alterado quando entramos no Palácio dos Festivais e assistimos a vinheta de uma “presença” subindo degraus de uma escada com tapete vermelho ao céu, ao som da suite “Le Carnaval des Animaux: Aquarium”, do compositor francês Camille Saint-Saëns. Nesse momento, sinto-me como uma criança em um parque de diversões, por poder assistir a primeira exibição mundial de um filme muito aguardado. E também como um “jovem turco”, sentado na primeira fileira para receber as imagens antes de todo (referência mais que precisa a do filme “Sonhadores”, de Bernardo Bertolucci). É uma sensação que não se consegue explicar. Tampouco quero a transformá-la em razão.
E é por isso tudo que sempre prefiro escrever esta matéria Tudo Sobre o Festival de Cannes, que, em 2025, chega a sua 78a edição, de 13 a 24 de maio, já estando aqui na Riviera Francesa, na costa azul do Mediterrâneo, porque esse palco da cinefilia (e também do glamour dos vestidos de gala) potencializa ao máximo percepções, pensamentos e achismos imediatos do amar ou odiar ou ainda “estar degustando” um filme. Há um impulso, uma passionalidade, um gesto de alguma cena (vide Jean-Paul Belmondo em “Acossado” passando as mãos no lábio, que, neste ano, ganhará uma versão nas mãos do realizador Richard Linklater), um signo atravessado de memórias afetivas e ou de subjetividades muito particulares, que nos despertam gatilhos e/ou saudosismos.
Sim, o Festival de Cannes é isso e muito mais. E, assim, escrevo estas palavras, acompanhadas da playlist “Festival de Cannes” no Spotify, para talvez dar mais inspiração, ainda que só de estar aqui já baste por completo. É, sim, a edição 78 pode sim ser considerada histórica para o Brasil, visto que foi escolhido para ser o País de Honra do Marché du Film (o maior evento comercial da indústria cinematográfica, e se configura como o quarto país a receber o título, depois da Suíça em 2024, Espanha em 2023 e Índia em 2022), considerado o mercado de Cannes, lugar em que todos os representantes do cinema ganham espaço para discutir e “vender” seus filmes e/ou suas ideias.
Em fase de finalização, o longa-metragem “Love Kills” é dirigido por Luiza Shelling Tubaldini e está no line-up do Fantastic Pavilion/Blood Window, no Festival de Cannes 2025, em um evento que será realizado no dia 15/05, no Marché du Film com a participação da diretora. O programa, voltado ao cinema de horror, suspense e fantasia da América Latina e Espanha, em 2025, incluiu sete obras de novos e promissores talentos contemporâneos do gênero fantástico. Junto com o Brasil, há produções da Argentina, Colômbia, Equador, Espanha, Paraguai e Peru.
“Love Kills” é ambientado no centro de São Paulo, na cracolândia. A proposta é ser um “thriller romantasy”, ou “romantasia”, mistura de elementos de histórias fantásticas com tramas de amores e paixões. O longa de Luiza Schelling trata do encontro entre Helena, uma jovem vampira negra, e Marcos, um humano que não sabe o que acontece nas profundezas de onde circula. A relação entre os dois personagens faz Helena mergulhar numa jornada de redescoberta de própria humanidade, enquanto luta com os instintos sanguinolentos.
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O Brasil também está presente na Women in Motion. A realizadora brasileira Marianna Brennand (de “Manas”) receberá o Prêmio Kering Talento Revelação (uma bolsa de 50 mil euros para apoiar a criação de seu segundo longa-metragem), que foi escolhida pela diretora malaia Amanda Nell Eu, que recebeu o prêmio em 2024. E estará ao lado da atriz Nicole Kidman, que recebe o prêmio Women in Motion 2025.
“Manas existe porque, para mim, é fundamental dar voz a mulheres e meninas que, de outra forma, não seriam ouvidas. O reconhecimento que este prêmio traz não apenas amplifica nossas vozes, mas também nos lembra da importância de mulheres dirigirem filmes sobre mulheres. Receber este prêmio da diretora Amanda Nell Eu, cujo trabalho é tão único e corajoso, me emociona profundamente. Reconheço a importância e a beleza de fazer parte da comunidade Women In Motion e gostaria de retribuir esta homenagem às manas que corajosamente compartilharam suas histórias conosco”, disse Marianna no texto oficial.
E ainda tem muito mais no ano do Brasil. Quem abre a Quinzena dos Cineastas do Festival de Cannes 2025 é o Ceará e está junto do diretor Karim Aïnouz, padrinho da edição deste ano do programa Director’s Factory, dentro do ano Brasil-França. A abertura conta com quatro curtas-metragens: “A Fera do Mangue”, de Wara (Ceará) e Sivan Noam Shimon (Israel); “A Vaqueira, a Dançarina e o Porco”, de Stella Carneiro (Alagoas) e Ary Zara (Portugal); “Ponto Cego”, de Luciana Vieira (Ceará) e Marcel Beltrán (Cuba); e “Como Ler o Vento”, de Bernardo Ale Abinader (Amazonas) e Sharon Hakim (França). Os filmes foram todas realizados em Fortaleza, envolvendo mais de cem profissionais cearenses do audiovisual. Karim, que esteve ano passo na competição oficial a Palma de Ouro com “Motel Destino”, disse na coletiva de imprensa (trecho que pode ser conferido no vídeo exclusivo Retrospectiva 2024 do Vertentes do Cinema): “O que me interessa muito é a diversidade em geral, e o cinema brasileiro tem estado cada vez mais diverso, como o Brasil é diverso, e o Ceará é parte disso. Só que eu acho que o Ceará ainda não estava no mapa de uma maneira muito expressiva, e é muito importante para mim eu pudesse contar uma história no lugar onde eu nasci e fui criado. E sobre o que eu tenho memórias absolutamente coloridas e cheias de luz”.
Já a a Semana da Crítica, ou em seu original francês Semaine de la Critique, que em 2025 chega a sua 64ª edição, traz em sua seleção de curtas-metragens o filme brasileiro (representante do Brasil na Semana 2025) em competição: “Samba Infinito”, de Leonardo Martinelli, que “nos leva a uma jornada urbana, que é ao mesmo tempo festiva e melancólica”. O filme de Leonardo, com Camilla Pitanga e Gilberto Gil), “acompanha um gari durante o Carnaval, busca retratar o luto pela perda da irmã do personagem e a sua jornada ao encontrar uma criança perdida”, numa co-produção com Baraúna Filmes.
Na Mostra Cannes Classics, o documentário brasileiro sobre Carlos Diegues, “Para Vigo Me Voy!”, uma coprodução Globo Filmes e GloboNews, fará sua estreia mundial em Cannes. O filme, que retrata um dos cineastas brasileiros mais queridos do festival francês, é dirigido por Lírio Ferreira e Karen Harley, e concorre ao Olho de Ouro, prêmio de Melhor Documentário do Festival de Cannes 2025, que ocorre entre os dias 13 e 24 de maio. O longa tem produção de Diogo Dahl, da Coqueirão Pictures, em coprodução com Raccord, Sinédoque e Dualto Produções. “O filme é uma viagem cinematográfica pela trajetória de Cacá Diegues, revelando a capacidade única de capturar o espírito do tempo presente em suas narrativas. O longa explora como as obras do cineasta refletem os traços da história brasileira nas últimas seis décadas, além de abordar aspectos íntimos de sua vida pessoal”.
E a cereja do bolo, do ano do Brasil no Festival de Cannes 2025, vem mesmo com o novo filme do cineasta Kleber Mendonça Filho, “O Agente Secreto”, na competição oficial a Palma de Ouro. O diretor pernambucano já competiu ao prêmio máximo com “Bacurau” (2019), levando o prêmio especial do Júri, e também com “Aquarius” (2016). Neste, o filme é um thriller político ambientado no Brasil de 1977. Na trama, Marcelo (Wagner Moura) é um especialista em tecnologia, que foge de um passado misterioso e volta ao Recife em busca de paz. Ele logo percebe que a cidade está longe de ser o refúgio que procura. Estrelado por Gabriel Leone, Maria Fernanda Cândido, Udo Kier, Hermila Guedes, Thomás Aquino, Alice Carvalho e grande elenco.
Aqui em Cannes, a revista Cahiers du Cinema, na edição de maio de 2025, pelo crítico Thierry Méranger, escreveu sobre “O Agente Secreto” (em sua matéria prévia de filmes imperdíveis do Festival de Cannes 2025): “O fascinante Retratos Fantasmas (2023, de KMF) encorajaram a incursão na ficção histórica? Na carreira do cineasta recifense, seu sexto longa-metragem, feito em casa, é, sem dúvida, o mais aguardado. E não só porque Kleber Mendonça Filho descreveu o roteiro como seu “melhor”. Para além da veia intimista, são os impulsos hitchcockianos ou wellesianos (como o título pede), o contexto político (o Brasil sob vigilância da ditadura), o prazer do filme de fuga (um professor em fuga no carnaval) e até a punk das coisas (estamos em 1977, afinal) que traçam os caminhos mais estimulantes. Sem mencionar um elenco eufórico dominado por Udo Kier e Wagner Moura, o Escobar de Narcos”.
E para encerrar com chave de ouro “gold plus”, também há Brasil no filme escolhido para ser a arte cartaz oficial do Festival de Cannes 2025: “Um Homem e uma Mulher”, de 1966, dirigido por Claude Lelouch, com Jean-Louis Trintignant (vivendo Jean-Louis Duroc) e Anouk Aimée (vivendo Anne Gauthier), o casal protagonista. É a primeira vez na história deste festival que um ano ganha dois pôsteres (duas perspectivas de uma cena do filme: a do abraço na praia, quase no final). Mas não é esta a que representa nosso país e sim a cena do ator Pierre Barouh que interpreta o “marido falecido” Pierre Gautier, que é músico na vida real e que foi amigo de Vinicius de Moraes. Isso explica a longa cena de ode ao samba. Leia a seguir, transcrita na íntegra:
Anne Gauthier: Talvez o que seja original é quem se ama.
Jean-Louis Duroc: E seu marido é original?
Anne: Para mim, sim.Ele é tão apaixonante, tão único, tão inteiro. Ele se apaixona por coisas, por pessoas, por ideias, por lugares. Por exemplo, passei uma semana no Brasil sem nunca ter estado lá. Ele fez um filme lá. Quando voltou, falou de samba uma semana inteira. O samba entrou na nossa vida.
Jean-Louis: “O samba entrou na nossa vida”
Anne: Sim.
O marido Pierre Gautier (canta): Ser feliz é mais ou menos o que a gente procura. Eu rio, eu canto e não me incomodo com quem inveja a alegria. Mas se tem um samba sem tristeza, é um vinho que não dorme, nem se apressa, senão pelo samba que eu quero.
O marido Pierre Gautier (narra): Fazer um samba sem tristeza é amar uma mulher apenas bonita, são as próprias palavras de Vinícius de Moraes, poeta e diplomata, autor desta canção, e como ele mesmo diz: “O branco mais negro do Brasil”. Eu, que sou o francês mais brasileiro da França, quero lhes falar do meu amor pelo Samba, como um namorado que não ousa falar a quem ama, fala a todos que encontra.
O marido Pierre Gautier (canta): Conheço a quem o samba incomoda, outros para quem é só uma moda, outros que o ouvem sem amá-lo, eu a amo e percorri o mundo procurando sua raiz vagabunda, hoje para achar o mais profundo, o samba é o que se deve cantar.
O marido Pierre Gautier (narra): João Gilberto, Carlos Lyra, Dorival Caymmi, Antonio Tom Jobim, Vinicius de Moraes, Baden Powel, que fez essa música e outras… recebam minhas saudações. Hoje quero beber até me embriagar, para sonhar com todos aqueles que, graças a você, eu descobri, e que fizeram do samba o que ele é. Saravá. Pixinguinha, Noel Rosa, Dolores Duran, Sílvio Monteiro e tantos outros. E todos os que estão surgindo. Edu Lobo e meus amigos que estão comigo hoje Baden, é claro, Nico, Osvaldo, Picchi, Oscar, Nicolino, Milton. Saravá. Todos os que fizeram com que exista uma palavra, que nunca mais poderei ouvir sem estremecer, uma palavra que sacode todo um povo quando a faz cantar: o mar e o céu: samba.
O marido Pierre Gautier (canta): Me disseram que vinha da Bahia, que tira seu ritmo e sua poesia de séculos de dança e de dor, mas seja qual for o sentimento que exprime, ele é branco de formas e de rimas, e negro, bem negro, em seu coração.
Sim, é muito Brasil para pouco Festival de Cannes. E tudo terá cobertura do Vertentes do Cinema.
Saindo do Brasil e encontrando outras geografias, o Festival de Cannes 2025 até dias atrás, complementou sua seleção oficial e suas sessões especiais com novos filmes, escolhidos após o anúncio oficial (leia aqui a matéria). A seguir a lista completa de toda a seleção oficial da edição 78, que inclui a sessão do novo filme “Highest 2 Lowest”, de Spike Lee.
COMPETIÇÃO A PALMA DE OURO
Les Aigles de la République, de Tarik Saleh
Alpha, de Julia Ducournau
Deux procureurs, de Sergueï Loznitsa
Die My Love, de Lynn Ramsay
Dossier 137, de Dominik Moll
Eddington, de Ari Aster
Fuorí, de Mario Martone
Jeunes mères, de Jean-Pierre et Luc Dardenne
Mother and Child, de Saeed Roustaee
Nouvelle Vague, de Richard Linklater
O Agente Secreto, de Kleber Mendonça Filho
La Petrte Dernière, de Hafsia Herzi
Renoir, de Chie Hayakama
Romería, de Carla Simon
Sirat, de Oliver Laxe
Sound of Falling, de Mascha Schilinski
The History of Sound, de Oliver Hermanus
The Mastermind, de Kelly Reichardt
The Phoenician Scheme, de Wes Anderson
Un simple accident, de Jafar Panahi
Valeur sentimentale, de Joachim Trier
FORA DE COMPETIÇÃO
La Femme la plus riche du monde, de Thierry Klifa
Highest 2 Lowest, de Spike Lee
Mission: Impossible – The Final Reckoning, de Christopher McQuarrie
Partir un jour, de Amélie Bonnin (ouverture)
La Venue de l’avenir, de Cédric Klapisch
Vie privée, de Rebecca Zlotowski
SESSÕES DA MEIA-NOITE
Dalloway, de Yann Gozlan
Honey Don’t, de Ethan Cohen
Exit 8, de Kawamura Genki
Feng Lin Huo Shan, de Mak Juno
Le Roi Soleil, de Vincent Maël Cardona
CANNES PREMIÈRE
Astin sem eftir er, de Hylnur Pálmason
Amrum, de Fatih Akin
Connemara, de Alex Lutz
La Disparition, de Josef Mengele de Kirill Serebrennikov
Magalhães, de Lav Diaz
Orwel: 2+2=5, de Raoul Peck
Renai Saiban, de Kôji Fukada
Splitsville, de Michael Angelo Covino
La Vague, de Sebastian Lelio
UN CERTAIN REGARD
Aisha Can’t Fly Away, de Morad Mostata
A Pale View of Hills, de Ishikawa Kei
Eleanor the Great, de Scarlett Johansson
Homebound, de Neeraj Ghaywan
L’Inconnu de la Grande Arche, de Stéphane Demoustier
Karavan, de Zuzana Kirchnerova
Love Me Tender, de Anna Cazenave Cambet
Météors, de Hubert Charuel
La Misteriosa Mirada del flamenco, de Diego Céspedes
My Fathers’s Shadow, de Akínola Davies Jr.
Once Upon a Time in Gaza, de Arab et Tarzan Nasser
O riso e a faca, de Pedro Pinho
Pillion, de Harry Lighton
Promis le ciel, de Erige Sehiri
Testa o Croce?, de Matteo Zoppis et Alessío Rigo de Rigi
The Chronology of Water, de Kristen Stewart
The Plague, de Charlie Polinger
Un dernier pour la route, de Francesco Sossai
Un poeta, de Simón Mesa
Soto Urchin, de Harris Dickinson
SESSÕES ESPECIAIS
Amélie et la métaphysique des tubes, de Mailys Vallade et Lianecho Han
Arco, de Ugo Bienvenu
Bono: Stories of Surrender, de Andrew Dominik
Dites-lui que je l’aime, de Romane Bohringer
Mama, de Or Sinai
Marcel et Monsieur Pagnol, de Sylvain Chomet
Qui brille au combat, de Joséphine Japy