Triângulo da Tristeza
Sonífera Ilha
Por João Lanari Bo
Festival de Cannes 2022
The Class War Never Ends, the Master Never Relents (Noam Chomsky)
“Triângulo da Tristeza”, o longa que o sueco Ruben Ostlund finalizou em 2022, ganhou a Palma de Ouro no Festival de Cannes – feito que o diretor já havia alcançado em 2017, com “The Square – A Arte da Discórdia”. Não é pouca coisa: são nove os realizadores que conseguiram a dupla coroação. No ambiente competitivo que caracteriza o Festival, obter esse reconhecimento com uma linguagem francamente sarcástica é mais inusitado ainda: ambos os filmes dividem opiniões e chegam a provocar repulsa em alguns críticos e espectadores, apesar de contarem com admiradores resolutos. Há uma certa obscenidade no cinema de Ostlund, geralmente encoberta por imagens solares que remetem a uma estética publicitária, que acolhe o olhar com promessas ilusórias e fetichistas: quem puxa o obsceno da cena é a riqueza, são os ricos em seu comportamento indolente. Como reparou um observador, os filmes do sueco empregam a mesma tática de criar situações profundamente desconfortáveis para pessoas mais do que confortáveis com seus privilégios. Uma tática, aliás, utilizada a rodo por um dos cineastas mais irônicos e demolidores que se tem notícia, Luis Buñuel – basta lembrar “O Discreto Charme da Burguesia”, de 1972. Não cabe a comparação entre os dois, que obviamente diferem em muitos aspectos, mas talvez eles compartilhem um olhar marxista no momento em que constroem seus personagens, criaturas definidas por desigualdades radicais de riqueza e privilégio, uma alegoria nada sutil sobre a famigerada luta de classes. Um olhar que traça um rápido declínio dos excessos da vida luxuriante para as agruras do estado de natureza nua e crua, onde riqueza e poder não servem para nada.
A falta de sutileza na alegoria de “Triângulo da Tristeza” é compensada, ou melhor, é enfatizada pelo estranho sentido de distanciamento com que cada pequeno episódio é organizado e executado. Assuntos banais são submetidos a uma quase-exaustão, provocando uma espécie de estado de antecipação na audiência – nunca se sabe o que vai acontecer a seguir, provavelmente uma situação derrisória. Logo na largada, Carl (Harris Dickinson) está fazendo teste com outros modelos masculinos para um anúncio: é a senha para o título do filme, “triângulo da tristeza” é a parte do rosto entre as sobrancelhas que fica enrugada quando a pessoa está estressada. Carl janta a seguir com sua namorada, Yaya (Charlbi Dean), modelo e influencer. Quem paga a conta? Ele se ressente de que sempre deva pagar, embora Yaya ganhe mais dinheiro do que ele. Ela foi convidada para um cruzeiro grátis, no iate de 100 metros que já foi de Aristóteles Onassis, o famoso “Christina O”. Lá encontram uma atlética tripulação de atendentes personal, treinada com rigor militar pela gerente Paula (Vicki Berlin) – e comandados pelo capitão Thomas Smith (Woody Harrelson), que passa a maior parte da viagem enfurnado na cabine, bebendo até perder os sentidos e lendo literatura marxista. Encontram também uma corja de burgueses desprovidos de charme, mas podres de ricos: o russo Dimitry e mulher, comerciante de fertilizantes; o casal britânico Winston e Clementine, que fabrica minas e granadas; um bilionário de software, tímido e solteiro; e Therese, alemã confinada a numa cadeira de rodas por um derrame, que só consegue dizer uma frase – “in den Wolken” (nas nuvens). Para arrematar, a tripulação inclui também funcionárias filipinas encarregadas da limpeza e arrumação, e cidadãos do terceiro e quarto mundo nas máquinas.
Uma nave de loucos, que atinge o paroxismo numa orgia de vômitos digna de Monty Pynthon. Para Rubem Ostlund, quanto mais de perto olhamos a beleza, mais feia ela parece: a própria beleza não passa de uma moeda de troca, volátil como uma…criptomoeda. “Triângulo da Tristeza” evolui de um etílico debate entre Thomas e Dimitry, contrapondo citações de Ronald Reagan e Noam Chomsky, para um naufrágio devastador, seguido de uma canhestra pantomima de sobrevivência dos poucos felizardos que chegam na sonífera ilha. É quando o valor de uso metrossexual de Carl transmuta-se em valor de troca sexual para Abigail, a filipina que lavava banheiros no iate e é o único ser capaz de pescar, acender uma fogueira e cozinhar. A precisão formal com que Ostlund compõe as cenas mistura silêncios constrangedores com moscas indesejáveis zumbindo entre personagens. Será que o futuro nos reserva um matriarcado liderado por Abigail?