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Transe

Retrato de uma esquerda distante do povo

Por Pedro Sales

Festival do Rio 2023

Transe

Centenas de bandeiras hasteadas, milhares de pessoas nas ruas e um só grito na garganta: “Ele Não”. As manifestações pré-eleições de 2018, o próprio período eleitoral em si e o temor do que viria a ser o Brasil de Bolsonaro são o foco de “Transe”. Em uma abordagem docuficcional – personagens com os mesmos nomes dos atores, interações reais com a população e um texto aberto a improvisos -, as diretoras Carolina Jabor e Anne Pinheiro Guimarães articulam uma espécie de prolongamento da esquerda-burguesa-artista. Grupo que apesar de vocal, jamais é articulado – inclusive no filme. Dessa forma, em vez de ser mera representação da classe, o filme torna-se um discurso do grupo. Ou seja, é uma obra tão inofensivamente política quanto aqueles a quem representa, um filme político com os mesmos vícios, falhas e falta de articulação desse grupo.

O trisal formado por Luisa (Luisa Arraes), Ravel (Ravel Andrade) e Johnny (Johnny Massaro) passa as tardes quentes em casa, cantando, tocando ou se beijando. Uma espécie de “Os Sonhadores”, de Bertolucci, até na simplificação política, teorizando os rumos do país em uma de dentro do apartamento ou de uma mesa de bar”. Uma política totalmente autocentrada, mesmo em uma ilusão altruísta, contida em si mesma, como em uma bolha. Portanto, o que se depreende do filme é um retrato de uma esquerda rica, desprendida, livre e desconectada da realidade do resto da população e, consequentemente, distante do povo. Poderia, sim, ser uma caricatura, o que traria uma fruição maior e não apenas vergonha alheia. Para isso, porém, falta acidez e autocrítica na representação. 

Assim, as duas primeiras cenas de “Transe” antecipam o inofensivo, e em certa medida ingênuo, discurso político que perdura por toda rodagem. Com câmera na mão e em um viés documental mais aflorado, Luísa está nas manifestações do movimento “Ele Não”, conversa com outras manifestantes e se engaja, naquele momento. Na cena seguinte, ela está em uma festa colorida pelo neon e marcada pela liquidez amorosa. Não é que política e diversão sejam imiscíveis, mas é extremamente sintomático que a protagonista deixe a manifestação e logo depois vá curtir. A expressão política como hobby, performance, nunca como vocação. Este corte, além de antecipar que o aspecto político quase sempre vai dividir espaço com as festinhas, enfraquece a primeira cena e jamais dimensiona o verdadeiro significado da ameaça de Bolsonaro. Essa provocação só surge pelas aspas do ex-presidente que saltam na tela. 

Carolina e Anne, portanto, estão quase sempre em lugar de condescendência para com os personagens. Cantar MPB, usar psicotrópicos, buscar explicações metafísicas para problemas materiais são essas ações repetidas a esmo que têm tanta importância e impacto no espectador quanto à articulação política inócua e altamente restrita. São poucos os momentos em que as diretoras-roteiristas questionam esse posicionamento. A cena em que uma mulher negra diz que outras como ela não estavam na manifestação, a participação do deputado Pastor Henrique Vieira (Psol-RJ), ou quando o amigo bolsonarista aparece causam momentaneamente isso. Mas duram muito pouco para trazer esse caráter provocador e de autocrítica, anteriormente mencionado. Ou seja, o que permanece no longa é o senso de superioridade de uma esquerda branca que falhou em 2018 pela arrogância de se achar na condição de apontar o “caminho verdadeiro”. É extremamente agoniante como o filme consegue trilhar o mesmo caminho desse fracasso. 

Transe”, portanto, é um retrato fiel e extremamente certeiro de uma esquerda distante do povo. Poderia ser, sim, uma obra extremamente política na medida em que olhasse criticamente para a prepotência do grupo derrotado em 2018, que em vez das dificuldades verdadeiras enfrentadas pela sociedade, preocupava-se com posts de Instagram – “ninguém solta a mão de ninguém”, e refletisse sobre como as mudanças são necessárias. A abordagem docuficcional muito apoiada em uma autocomiseração política, no entanto, apenas é cansativa e fastidiosa. A inserção documental do rapper Mano Brown criticando o Partido dos Trabalhadores ao dizer que a sigla deveria voltar para base, neste sentido, é até irônica no filme, como se fosse incapaz de perceber que o discurso é representativo para a própria esquerda representada na obra. A incomunicabilidade com o povo que culmina no desespero de tentar virar votos, por exemplo, em forma de filme só é irritante. Não é por acaso que na cena em que o personagem de Johnny Massaro começa a conversar com Cláudio Prado, o homem que está no fundo do bar sai de cena. Se as duas cenas iniciais sintetizam a expressão política aliada a festinhas, esta última citada reflete o verdadeiro problema: não conseguir se comunicar com o povo.

1 Nota do Crítico 5 1

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